Em Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin/Wings of Desire, 1987), Wim Wenders consegue retratar um mundo subjetivo de forma quase inigualável no cinema. O filme começa em preto & branco, e com câmeras deslizantes, escorregadias, que denunciam um olhar diferente diante do mundo, um olhar sobrenatural. Esse olhar, descobrimos logo no início, é o olhar de um anjo, ou melhor, dos anjos. A montagem quase sem cortes, seguindo um caminho como de um ser individual, adentrando os lugares mais impróprios para uma câmera ou um ser humano, os pensamentos das pessoas nas vozes em off, a junção do som com a imagem, tudo isso compõe a visão do anjo em relação à Terra, ao mundo dos homens.
As crianças têm um papel fundamental no filme como metáfora da inocência e do acreditar em fenômenos metafísicos. Apenas elas vêem os anjos, mesmo que não tenham consciência de que eles são anjos.
O filme continua mostrando a vida dos anjos e seu olhar diante da humanidade até que um dos anjos que o espectador acompanha mais de perto parece se interessar mais por uma mulher do que por todos os outros humanos. Essa mulher é uma acrobata em um circo. Sua primeira aparição é fantasiada de anjo, no alto, balançando como se voasse, como se fosse um anjo. Talvez surja daí o interesse maior do anjo nela. Depois desse momento, começam a aparecer imagens coloridas, aos poucos, mas que se tornam cada vez mais freqüentes. O colorido simboliza o mundo humano como visto por nós, e essas aparições do colorido indicam a transformação paulatina do anjo em ser humano.
Quando finalmente ele se torna um homem mortal, o filme passa a ser colorido o tempo inteiro. Agora vemos realmente o mundo através de um ser humano, e ele é comum. No entanto, o que percebemos (juntando os diálogos, a história e as imagens e os sons) é que o mundo dos anjos é estranho, diferente, mas apático, enquanto o mundo terreno é comum, normal, mas cheio de vida, de cor, de sensações.
A relação do anjo transformado em homem com a acrobata por quem ele se apaixona parece ser algo divino, predestinado, de modo que os dois se reconhecem automaticamente, sem que exista drama no seu início de relacionamento.
No final, temos a narração do anjo, que deixa a solução aberta, apenas com a menção de que algo aconteceu, mas sem dizer ou mostrar o quê.
Na versão americana, Cidade dos Anjos (City of Angels, 1998), de Brad Silberling, temos os mesmos aspectos narrativos do filme de Wim Wenders, mas se percebe uma busca por agradar determinado público. O primeiro ponto negativo da versão americana é não utilizar a imagem em preto & branco, nem procurar exprimir o mundo dos anjos através da câmera. Todas as cenas são vistas de forma objetiva, de modo que não há distinção entre o mundo dos anjos e o dos homens. A câmera objetiva o tempo inteiro e a edição tradicional, mostrando um ponto de vista fragmentado não permitem uma visão de um ser individual, subjetiva, mas uma visão objetiva do mundo.
A mulher por quem o anjo se apaixona, de acrobata, é transformada em médica, o que talvez seja até uma boa mudança, já que a relação entre o anjo e ela parece mais afeita pela personalidade, pelo fato dela também salvar vidas, como ele, e não por uma semelhança “física”.
No entanto, o filme é inteiramente comum, transformando uma história sobre a beleza do mundo através de um olhar de fora em um simples romance dramático, seguindo todos os moldes preestabelecidos na indústria hollywoodiana. As cenas que mostram o anjo apaixonado pela médica chegam a ser ridículas, pois ele demonstra um interesse sexual (percebido por culpa da objetividade da imagem) por ela.
O romance deles tem início e desenvolvimento da mesma forma que quase todos os filmes românticos americanos. Os dois se conhecem, paqueram, conversam, se divertem, e começam a ter seus conflitos, por causa da natureza estranha dele.
As explicações começam a aparecer nos diálogos, e não sobra nada para o espectador entender, tudo é explicitado, inclusive os passos para que um anjo possa se tornar humano. A “queda” como símbolo se perde aqui, pois se torna uma queda real, um símbolo psicológico para o anjo, e não uma metáfora para a condição de anjo caído na Terra, como é em Asas do Desejo.
A versão americana chega até a não fazer sentido: quando o anjo caí, e se torna humano, ele fica maravilhado com a aparição das cores. Ora, e as cores não estavam sempre lá? Somente agora nós sabemos que os anjos não vêem colorido. Toda a transformação da realidade é extinta.
O que se percebe ao confrontar os dois filmes é, de um lado, a objetividade exagerada do cinema tipicamente americano e, de outro, a subjetividade de um cinema preocupado com a arte e com o fazer artístico.
Cidade dos Anjos não é um filme ruim, é agradável e emocionante em alguns momentos, mas Asas do Desejo é arte de verdade, arte que fica até um tanto diminuída se levarmos em conta as explicações da versão americana, como é o caso do final, que se reduz a uma tragédia sem sentido.
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Filmes:
Asas do Desejo (Wim Wenders, 1987)
Cidade dos Anjos (Brad Silberling, 1998)