Brokeback Mountain: ambigüidade




Já falei aqui sobre um problema na adaptação de uma obra literária para um filme: a metáfora. Outro problema é a ambigüidade.
Perto do final de Brokeback Mountain (tanto filme quanto conto), temos duas possibilidades de destino para Jack: é possível que ele tenha sido assassinado por homofóbicos; ou que tenha sofrido um acidente. Mesmo que o cinema tenha essa tendência à objetividade, ele pode ser ambíguo, e na cena em que Lureen conta a Ennis o que aconteceu com Jack nós vemos essa ambigüidade na tela. Lureen descreve a morte de Jack como tendo sido um acidente, mas, enquanto escutamos as palavras dela, ao telefone, contando o acidente, nós vemos a cena de assassinato, como se passando na mente de Ennis.



Dessa forma, na junção som/imagem, nós temos duas cenas (o acidente e o assassinato), cada uma mostrando uma possibilidade, e as duas bastante plausíveis.

O efeito foi tirado perfeitamente do conto, que assim descreve a conversa ao telefone:

“...ela (Lureen) falou com uma voz calma, sim, Jack estava enchendo um pneu no caminhão numa estrada secundária quando o pneu explodiu. O rebordo estava danificado não se sabe como e, com a força da explosão, o aro voou na cara dele, quebrando-lhe o nariz e a mandíbula, deixando-o inconsciente, caído de costas. Quando apareceu alguém, ele já tinha se afogado no próprio sangue.
Não, pensou Ennis, pegaram ele com a chave de roda.”

A história da chave de roda já tinha sido contada por Ennis, em momento anterior (tanto no filme quanto no conto): um velho homossexual que vivia com outro tinha sido morto com uma chave de roda por homens da região quando Ennis tinha nove anos.
As duas possibilidades caminham lado a lado tanto no filme quanto no conto, embora cada leitor/espectador possa pender para uma das soluções, não há provas nítidas de que uma é certa e outra não. No filme, é a imaginação, pensamento, de Ennis que cria a cena da chave de roda; e também no conto, é o pensamento dele, o que fica explicitado no “pensou Ennis”.

Com esse exemplo (assim como o exemplo da metáfora), vemos que há soluções possíveis para se transpor aspectos difíceis de um romance para um filme, mesmo que não sejam soluções perfeitas.

---

filme:
O Segredo de Brokeback Mountain, 2005. (dir: Ang Lee)

livro:
PROULX, Annie. O Segredo de Brokeback Mountain. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006

---

*Uma primeira versão desse texto foi publicada originalmente no suplemento 'Augusto' do Jornal da Paraíba de 26 de Novembro de 2006 (nessa edição, o texto saiu com a autoria errada, mas na edição posterior do suplemento foi publicada uma errata, indicando meu nome como autor verdadeiro do texto).

Um comentário:

alana disse...

Quando vi "Brokeback Mountain" nem pensei na versão relatada pela esposa de Jack como uma possibilidade - eu imaginei como Ennis, a morte violenta.
Acho interessante quando há alternativas no final, mesmo que uma delas sempre acabe parecendo a que "de verdade" aconteceu (principalmente se forem mostradas em seqüência, a última acaba sendo tomada como a "certa"). Já leu "A Mulher do Tenente Francês", de John Fowles? Há duas soluções para o casal central, bem diferentes uma da outra. Na versão para o cinema (by Harold Pinter e Karel Reisz) optou-se pela divisão da trama em presente e passado, cada um com um final.