Sede de Viver (Lust for life, 1956, dirigido por Vincente Minnelli) é um dos filmes que adaptam a vida de Vincent Van Gogh para o cinema (sobre os outros falo um dia, hoje fico só com ele). É uma adaptação de segunda ordem, pois é originado de um romance que trata da vida de Van Gogh: Lust for Life (de Irving Stone). Trata-se de um filme típico dos anos 1950, talvez já com traços do cinema dos anos 1960. As atuações, os diálogos, a direção, até a montagem, cheia de sobreposições nos cortes, todos esses aspectos são notavelmente um reflexo do cinema da época. O filme ganha, realmente, no tratamento dos cenários, que sempre procuram refletir os ambientes pintados por Van Gogh, embora sem espelhar a plasticidade do pintor, mas sim realizando uma reprodução realista dos temas escolhidos por Van Gogh.
(Imagem do filme)
(Os comedores de batatas, 1885)
Quando aparecem os comedores de batatas, no filme, falta à imagem a escuridão e a sujeira tão característica do quadro, bem como a escuridão da fraca iluminação, que deforma os rostos com suas sombras fortes e alto contraste. A aproximação que importa ao filme, no entanto, não é técnica; ele prefere aproximar o conteúdo pretendido por Van Gogh, que era fazer uma exaltação do trabalho manual, junto ao alimento, pago com esse trabalho. A imagem adquire sentido social, dentro do contexto do filme, particularmente dessa época da vida do artista, na Holanda.
(Imagem do filme)
(A ponte em Langlois com lavadeiras, 1888)
Aqui, vemos a ponte de Langlois, que Van Gogh pintou várias vezes. Faltam, da mesma forma que na imagem anterior, as características básicas do quadro: o contraste entre o amarelo e o azul, a água com um azul forte que ajuda no movimento das lavadeiras, os tons fortes e vivos da pintura. O que vemos no cenário do filme é apenas a reprodução realista do objeto pintado por Van Gogh, não vemos sua visão do objeto, algo que fica mais concreto nos diálogos, nas falas da personagem Vincent, no filme, talvez da mesma forma que sua visão de mundo fica mais clara nas cartas que o artista escreveu.
(Imagem do filme)
(O café de noite, 1888)
Vemos, aqui, com grande clareza, o cuidado imenso da direção de arte do filme em reproduzir perfeitamente o quadro de Van Gogh. Mais uma vez temos o reflexo realista da pintura do artista, como uma recriação de uma recriação. Van Gogh recria o ambiente original, real, em seu quadro, e o diretor de arte recria o quadro em ambiente real, como uma adaptação de uma adaptação do mundo real. Algo que se assemelha à própria condição do filme, uma adaptação de um romance que é uma adaptação de uma vida real.
(Imagem do filme)
(O quarto de van Gogh em Arles, 1889)
Na imagem do quarto de Van Gogh, vemos a mesma falta das imagens anteriores: as cores fortes e contrastantes, a perspectiva alterada, e a pincelada grossa e crua. Talvez agora se possa perceber que o filme não pretende mostrar o mundo como visto pelo artista, mas mostrar como o artista transformava o mundo que via. Confrontando essas imagens realistas, que reproduzem os temas de forma comum, aparecem imagens dos quadros de Van Gogh, como se o filme procurasse mostrar, realmente, o quanto o mundo real é diferente do mundo pintado pelo artista, do mundo como visto por Vincent. A sensação de tranqüilidade, de paz, de harmonia, no entanto, pode ser vista mesmo na reprodução realista do filme, talvez pela ligação que nós já fazemos automaticamente com o quadro.
(Imagem do filme)
(Campo de trigo com corvos, 1890)
Mais uma vez vemos uma composição quase perfeita, uma reprodução dentro do mundo real do mundo de Van Gogh. E podemos perceber, com mais clareza, como o artista alterava o mundo por causa de sua percepção, por causa de seus problemas internos. O céu, no mundo real (no filme), é claro, alegre, até. O campo de trigo é simétrico, bem alinhado, e calmo. No quadro, o céu é claro por trás, mas manchas escuras tomam a imagem, como uma escuridão que toma conta da luz; o campo de trigo é revolto, parece estar em convulsão; os caminhos são tortos, confusos. Os corvos aparecem do nada, negros, roubando a beleza da imagem. Era realmente o último quadro de Van Gogh, um dos mais belos.
Um comentário:
Vincent Van Gogh visto por Vincente Minelli é algo no mínimo curioso. Gostei muito dessa sua visão do filme mostrando mais o real que o real visto por Van Gogh em sua angústia. Eu já pensara antes, quando vi o filme, como poderia ter sido se o diretor e seu fotógrafo tivessem adotado o perfeccionismo nas imagens de, por exemplo, Kubrick e John Alcott em "Barry Lyndon", ou de Peter Webber e Eduardo Serra em "Moça com Brinco de Pérolas".
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