O Talentoso Ripley: a arma pela vítima




Nunca li nada de Patricia Highsmith, mas, não sei por qual motivo, vi a maioria dos filmes baseados em livros dela. Suas histórias (pelo menos as que foram filmadas) são típicas de romances policiais, e não parecem conter grandes méritos artísticos. Deve ter sido Hitchcock o responsável por torná-la famosa (pelo menos no ramo cinematográfico), quando fez Pacto Sinistro (Strangers In A Train, 1951). Há vários outros filmes, além desse, mas me interessam aqui apenas os filmes da série Ripley.
O primeiro deles foi O Sol Por Testemunha (Plein Soleil, 1960), de René Clément, com Alain Delon, baseado no romance O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley, 1955). Depois veio O Amigo Americano (Der Amerikanische Freund, 1977), de Wim Wenders, no qual Ripley foi interpretado por Dennis Hopper, e que é baseado no romance Ripley's Game. O terceiro, meu preferido, foi O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley, 1999), de Anthony Minghella, baseado no romance homônimo, em que Matt Damon faz o papel de Tom Ripley. Logo em seguida veio mais uma adaptação de Ripley's Game, O Retorno do Talentoso Ripley (Ripley's Game, 2002), protagonizado por John Malkovich. O último é Ripley No Limite (Ripley Under Ground, 2005), baseado no romance de mesmo nome, com Barry Pepper.
Acho que desses todos só os três primeiros merecem ser vistos. E se for ver apenas um, veja O Talentoso Ripley, de Minghella.
Eu nunca tinha assistido O Sol Por Testemunha, embora soubesse se tratar de uma adaptação do romance O Talentoso Ripley. Resolvi assistir semana passada. É um filme bom, mas não tão bom quanto o de Minghella. O Sol Por Testemunha começa mal, já no meio da história, sem todo o preparativo de O Talentoso Ripley, que constrói a personagem tão bem. A história do filme de Clément se resume a um assassino tentando não ser descoberto. Nisso, até que o filme ganha fôlego na parte final, e se torna bom, com momentos realmente interessantes. O Talentoso Ripley, no entanto, além de todo o preparativo de construção da personagem e do relacionamento entre Tom e Dickie Greenleaf, que forma o caráter dele, e demonstra os talentos dele, há os assassinatos, que me parecem mais bem formulados, mais bem pensados, e as escapadas, que são mais bem costuradas.
Para ilustrar o que venho dizendo, vale comparar uma cena de ambos os filmes, além da mesma cena no romance de Highsmith.

* No romance:

"Freddie bateu na porta. A maçaneta virou. Estava fechada. Tom pegou um cinzeiro de vidro pesado. Ele não conseguia atravessar o cinzeiro com a mão, e teve que segurar pela ponta. Ele tentou pensar por apenas mais dois segundos: não havia outra saída? O que ele faria com o corpo? Ele não conseguia pensar. Essa era a única saída. Ele abriu a porta com a mão esquerda. A mão direita com o cinzeiro estava afastada para trás e para baixo.
Freddie entrou na sala. 'Escuta, você poderia me dizer-'
A ponta curvada do cinzeiro bateu no meio de sua testa. Freddie pareceu tonto. Então seus joelhos se dobraram e ele caiu como um touro que levou uma martelada entre os olhos. Tom fechou a porta com um chute. Ele esmagou a ponta do cinzeiro na parte de trás do pescoço de Freddie. Ele bateu no pescoço de novo e de novo, com medo de que Freddie pudesse estar se fazendo e que um de seus braços enormes pudesse de repente circular suas pernas e puxá-lo para baixo. Tom deu um golpe de relance na cabeça dele, e apareceu sangue. Tom se amaldiçoou. Ele correu e pegou uma toalha do banheiro e colocou embaixo da cabeça de Freddie. Então ele procurou o pulso de Freddie. Ainda estava lá, fraco, e parecia desaparecer enquanto ele tocava como se a pressão de seus dedos parasse ele. No segundo seguinte ele se foi."¹

Percebe-se que a cena, no livro, acontece de forma bruta, priorizando a violência, a raiva, o sangue. No campo metafórico, há apenas a pobre comparação entre a queda da vítima e um touro abatido. O objeto que ele usa é um pesado cinzeiro, que não possui interesse maior do que ser simplesmente uma arma.

* Em O Sol Por Testemunha:



Aqui, em O Sol Por Testemunha, a cena se dá de forma parecida com o romance, reduzindo um pouco a violência, e deixando Ripley um tanto absorto, distante, frio. A metáfora, acredito, fica por conta do frango no chão. Ele usa uma estátua de Buda, algo interessante, mas a estátua continua somente como um objeto usado por improviso para o assassinato, assim como o cinzeiro no romance.

* Em O Talentoso Ripley:



No filme de Minghella, além da cena ser mais emocionante, mais brutal, há o objeto utilizado e, mais, a forma como ele é usado para criar sentido. O objeto é uma estátua de uma cabeça humana, algo figurativo, assim como em O Sol Por Testemunha, mas, aqui, o que importa é a presença, no final, do objeto em si. O corpo aparece caindo ao chão, mas o que fica é a estátua, como metonímia do morto. O sangue fica na cabeça da estátua, como uma metonímia da cabeça da vítima, uma metonímia que pode ser traduzida como "a arma pela vítima".
São momentos belos como esse, de pura poesia, que fazem de O Talentoso Ripley um grande filme, o melhor de Mighella.

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¹ "Freddie knocked on the door. The knob turned. It was locked. Tom picked up a heavy glass ash-tray. He couldn't get his hand across it, and he had to hold it by the edge. He tried to think just for two seconds more: wasn't there another way out? What would he do with the body? He couldn't think. This was the only way out. He opened the door with his left hand. His right hand with the ash-tray was drawn back and down.
Freddie came into the room. 'Listen, would you mind telling-'
The curved edge of the ash-tray hit the middle of his forehead. Freddie looked dazed. Then his knees bent and he went down like a bull hit between the eyes with a hammer. Tom kicked the door shut. He slammed the edge of the ash-tray into the back of Freddie's neck. He hit the neck again and again, terrified that Freddie might be only pretending and that one of his huge arms might suddenly circle his legs and pull him down. Tom struck his head a glancing blow, and blood came. Tom cursed himself. He ran and got a towel from the bathroom and put it under Freddie's head. Then he felt Freddie's wrist for a pulse. There was one, faint, and it seemed to flutter away as he touched it as if the pressure of his own fingers stilled it. In the next second it was gone."

Um comentário:

Anônimo disse...

Anakan,
eu vi "O Sol por Testemunha" primeiro. Lembro de ter gostado, mas vi faz muito tempo, mas muito tempo. PRecisaria rever.
Quanto ao "Talentoso Ripley" eu gostei muito.
Muito boa sua observação desta cena. Uma beleza mesmo.
Abração
astier