Metáfora na cidade de Sylvia




Há várias formas de se relacionar cinema e poesia. A mais simples delas foi usada principalmente por Tarkovsky, que diz respeito a incluir leitura de poemas num filme. Esse modo possui suas variantes: a leitura pode ser feita por um narrador (como acontece em Tarkovsky), ou pode ser feita por uma personagem dentro da diegese da obra (como em cena de Antes do Amanhecer). Outras formas bastante simples, mas que encerram problemas talvez maiores, são as citações de autores ou de obras, de textos ou de versos, pelas personagens, no meio dos diálogos ou em monólogos. Esse tipo deveria ser mais simples, no entanto, não o é. A questão é que não basta citar algum poema, mas as relações entre a obra citada e a obra fílmica têm que ser claras o bastante para que um leitor/espectador certo (the right reader) possa entender, e ao mesmo tempo o poema citado tem que ter validade no contexto em que é posto. Esse é o problema. Na maioria das vezes a citação momentânea, parcial, é apenas uma citação, sem ter qualquer motivação na obra fílmica, ou então é uma citação cujo motivo se torna difícil de apreender, ou ainda, o mais comum, é uma citação tão óbvia que não acrescenta nada à obra. Não é o que acontece em Tarkovsky, por exemplo, em que o texto completo possui suas próprias motivações, e as relações com a obra são complexas mas não ininteligíveis.

O mais interessante de se relacionar a poesia ao cinema, no entanto, não é recorrer a nenhum desses recursos. Trata-se de fazer uso dos recursos típicos da poesia verbal; usar metáforas, metonímias, rimas visuais, etc., em um filme, equivale a usar esses mesmos recursos em um texto verbal, seja narrativo, seja lírico. Já falei sobre alguns desses recursos no cinema em alguns posts aqui no blog.

Para ficar somente no exemplo mais comum (comum por aparecer mais vezes, não por ser simples), vamos à metáfora. No filme En la ciudad de Sylvia (2007), de José Luis Guerín, há uma cena extremamente poética, e que encerra justamente uma metáfora, acredito, bastante clara.


Nessa cena, pode-se perceber como os cabelos da mulher são comparados metaforicamente às folhas do caderno, e, por extensão, aos cabelos das mulheres nos desenhos. Os desenhos, claro, já são metonímia, ou representações, de mulheres. A metáfora então se complica: as mulheres reais são mulheres representadas, e as representações são mulheres reais. A beleza da metáfora, no entanto, depende do som. Perceba como o som do vento nas páginas do caderno continua mesmo depois do corte para o cabelo da mulher, que também se move com o vento. É o som do papel que se repete nos cabelos reais da mulher que realiza concretamente a metáfora.

Só para se ter idéia do quanto isso é semelhante à poesia verbal, lembremos de poema de João Cabral de Melo Neto, em que o poeta compara, metaforicamente, as folhas do livro às folhas de uma árvore, chegando até a falar mesmo do som do vento repetido nas duas folhas, que são a mesma, e cujo som é responsável pelo sentido, como o som das palavras.


PARA A FEIRA DO LIVRO

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.


A Função Emotiva




Roman Jakobson
elabora, no texto "Lingüística e Poética", faz um quadro dos fatores constitutivos de todo processo comunicativo, e relaciona a cada um deles a uma das funções da linguagem. Como meu objetivo aqui não é examinar todas as funções, mas verificar apenas uma delas no cinema, reproduzo aqui somente o quadro, sem falar de cada uma:

CONTEXO
(REFERENCIAL)

REMETENTE..................MENSAGEM..................DESTINATÁRIO
(EMOTIVA)....................(POÉTICA)...................(CONATIVA)

CONTATO
(FÁTICA)

CÓDIGO
(METALINGÜÍSTICA)

Eu estudo realmente a função poética, centrada na mensagem, principalmente no modo como ela se opõe à função referencial, centrada no contexto, mas quero falar aqui sobre a função emotiva, que tem como foco o remetente.

A função emotiva, ou "expressiva", visa a expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo que está falando. Tende a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou simulada.
Essa função, claro, não se limita à linguagem verbal, e, acredito, pode ser facilmente percebida no cinema, por exemplo, que é essencialmente linguagem visual.
No cinema, determinada cena deve passar determinada emoção ao espectador, de forma que este não apenas saiba qual a emoção que o diretor (o autor, seja ele quem for) quer passar, mas que ele realmente sinta a mesma emoção ao ver a cena.

Seria muito fácil usar aqui cenas dramáticas, com muito choro e muita tragédia, ou o oposto disso, uma cena alegre, divertida, com muitos sorrisos, para passar um sentimento de tristeza ou alegria, respectivamente. Não vou fazer isso. Prefiro escolher um sentimento que não tem nome, algo que não é muito comum, pelo menos não nas discussões do dia-a-dia, mas que, acredito, todo mundo já sentiu.
Para diminuir o risco de que meu leitor não sinta a mesma coisa que eu, e a mesma coisa que, acredito, o diretor tentou passar com a cena, vou reproduzir aqui duas cenas, de dois filmes bastante diferentes, mas que transmitem, pelo menos a mim, a mesma sensação, o mesmo sentimento.
A primeira cena é do filme Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004), de Richard Linklater, e a segunda é de Memórias (Stardust Memories, 1980), de Woody Allen.






Não quero me deter em explicar o tipo de sentimento que se passa aqui, não pretendo mesmo pôr em palavras. Prefiro que o leitor julgue por si só se o sentimento é o mesmo.

A diferença que percebo entre as cenas, embora elas me passem a mesma sensação, é que uma se fundamenta mais nas palavras, na descrição do sentimento, mesmo que este seja fortemente ampliado pelas imagens e pela música, enquanto a outra se fundamenta unicamente nas imagens e na música, mas tendo o sentimento ampliado pelo contexto em que se dá a cena, que, infelizmente, não posso reproduzir aqui (seria necessário ver o filme inteiro, além do filme anterior, Antes do Amanhecer - Before Sunrise, 1995).
Não sei se existe uma relação entre o smoth jazz e esse sentimento, mas sei que ambas as músicas são nesse estilo.
Acho as duas cenas tão parecidas que acredito mesmo que a descrição contida na narração do filme de Woody Allen, mutatis mutandis, vale para a cena de Richard Linklater.

"Foi um desses ótimos dias de primavera. Era domingo e era possível sentir que o verão estava chegando. Eu lembro que naquela manhã eu e Dorrie tínhamos caminhado no parque. Voltamos ao apartamento. Ficamos só lá sentados. Eu coloquei um disco de Louis Armstrong, uma música que eu cresci amando. Foi muito bonito. Eu olhei ao redor e vi Dorrie lá sentada. E lembro que pensei no quanto ela era maravilhosa, e no quanto eu a amava. E acho que foi a combinação de tudo. O som da música e a brisa, e como Dorrie estava linda. E por um breve momento, tudo pareceu se encaixar perfeitamente. E eu me senti feliz, de uma forma quase indestrutível. É engraçado. Aquele simples momento de contato, me tocou de uma forma muito profunda."

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Filmes:
Memórias (Stardust Memories, 1980) - Woody Allen
Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004) - Richard Linklater

Livros:
Lingüística e Comunicação - Roman Jakobson