O título





Para que ninguém diga que eu roubei o título de Décio Pignatari, recorro a ele mesmo para explicar de onde vem a palavra "debarte".

Diz ele, em "O que é comunicação poética":

"Vamos imaginar que você quisesse batizar uma revista ou um programa de televisão que tratasse de assuntos de arte - e criasse o título "Debarte". Numa palavra só, você estaria dizendo que se trata de um programa ou revista destinados a debater assuntos de arte." (pp. 55-56)

Não é lá o melhor dos títulos, e isso não é uma revista ou programa de televisão, mas funciona da mesma forma.

Escrevi isso lembrando do Eros de Caravaggio. Um exemplo perfeito de arte barroca, algo muito anterior ao pensamento dos poetas concretos brasileiros, e também grande arte. Não sei qual é a relação. Talvez debater arte seja antitético, um anjo de asas negras, um jovem em pose sensual, um rosto angelical com um sorriso malicioso, a luz e a sombra. Debater arte deve ser essa tentativa de acabar com o opaco, o escuro. A análise pode ser a luz, e a obra a sombra.























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Referências:
PIGNATARI, Décio (2005). O que é comunicação poética. 9ed. Cotia-SP: Ateliê Editorial.

Imagens:
Amore vincitore, 1603. (Caravaggio)

Dois versos de Yeats





No poema "those dancing days are gone" de Yeats, há dois versos que se repentem nas três estrofes.

"I carry the sun in a golden cup.
The moon in a silver bag."

Não pretendo analisar o texto por inteiro aqui, seriam muitas linhas para um blog. Quero apenas pensar sobre esses dois versos, como se estivessem isolados do resto do poema. (Aqui os professores de literatura podem querer me trucidar, peço perdão por esse crime terrível de descontextualização).

No primeiro momento em que nos deparamos com esses versos (pelo menos foi o que aconteceu comigo), é fácil gostar sem ao menos saber o motivo. É algo análogo à visão de um quadro surrealista ou abstrato, apreciamos a imagem sem entendê-la por completo, para só depois descansar a mente sobre a obra e refletir sobre seu significado.























Em um segundo momento, já é possível visualizar a beleza de se carregar o Sol e a Lua consigo, como se fosse somente a lembrança ou a visão dos astros que, por metonímia, fossem carregados
pelo sujeito falante no poema.

Em um terceiro momento, pode-se debruçar sobre as palavras e perceber como o Sol ("sun") se reflete no dourado ("golden"), por ter essa cor, e como a Lua faz o mesmo no prateado ("silver").
Além disso, o copo (ou cálice - "cup"), se visto de cima, possui o formato circular que o Sol também possui sendo visto por nós aqui da Terra. A bolsa (ou saco - "bag") também aparece na Lua; ou melhor, a Lua aparece de novo na bolsa, como se estivesse pendurada no céu, uma lua crescente ou minguante.
O Sol e a Lua, então, estão "carregados" na imagem do cálice dourado e da bolsa prateada, como se o poeta estivesse dizendo que, como poeta, ele vê o Sol e a Lua dessa forma, metaforicamente.
Além disso, é possível perceber uma hierarquia. O Sol, maior e mais brilhante, é ouro, metal mais precioso do que a prata, que é a Lua, astro menor e de menor brilho.
(Ainda é possível fazer outras relações, mas fico por aqui na análise.)

Só nesse terceiro nível, de análise mais precisa, é possível entender de onde veio o prazer primeiro, quando se leu os versos pela primeira vez. É também a partir de então que se torna impossível sentir o mesmo prazer de novo, pois essa racionalização acaba com o prazer puro da simples leitura.

O quadro de Pollock aqui reproduzido pode não ter muito a ver com os versos de Yeats, mas vale para refletir sobre esse prazer que se sente ao ver algo belo, sem necessidade de entendimento racional.

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Recentemente a cantora francesa Carla Bruni lançou um cd (No Promises) com poemas de Yeats, W. H. Auden e Emile Dickinson, entre outros.

Clique aqui para baixar o cd inteiro de Carla Bruni no emule.
Clique aqui para baixar somente a música "Those dancing days are gone" (também no emule).
Clique aqui para saber mais sobre Yeats.
Clique aqui para saber mais sobre Pollock.
Clique aqui para ler o poema inteiro de Yeats.

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Imagens:
The Deep, 1953. (Jackson Pollock)

René Magritte + Horácio





Horácio inicia a "Arte Poética" dizendo o seguinte:

"Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso?"

Nessa época (século I a. C.), não havia ainda pintura abstrata, cubista, nem mesmo impressionista ou expressionista, quanto mais surrealista. Claro que Horácio não poderia imaginar, com sua mente voltada para o modelo de arte tipicamente clássico (Aristotélico, inclusive), que um dia um quadro como esse que ele descreveu não só seria possível, como não admitiria risos, por ser, ironicamente (horácio era, entre outras coisas, filósofo), típico de uma arte extremamente filosófica, o surrealismo.

Não posso deixar de lembrar, ao ler essa descrição de Horácio, de Magritte, pintor belga do século passado. O quadro "L'invention collective", de 1934, apresenta uma figura semelhante, mas, ao contrário da descrita por Horácio, começa em cabeça de peixe e termina em corpo de mulher. O quadro é uma inversão da figura da sereia, e, criatura mais terrível, a de Magritte possui órgão sexual humano e um olho que nos observa com desejo e medo, ou que talvez esteja morto.















O quadro, diante da comparação com a descrição de Horácio, serve como resposta da arte moderna ao pensamento clássico, voltado para um modelo "mitológico" de arte.

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Referências:
HORÁCIO, Arte Poética. In: A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1990.

Imagens:
L'invention collective, 1934. (René Magritte)

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