René Magritte + Horácio





Horácio inicia a "Arte Poética" dizendo o seguinte:

"Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso?"

Nessa época (século I a. C.), não havia ainda pintura abstrata, cubista, nem mesmo impressionista ou expressionista, quanto mais surrealista. Claro que Horácio não poderia imaginar, com sua mente voltada para o modelo de arte tipicamente clássico (Aristotélico, inclusive), que um dia um quadro como esse que ele descreveu não só seria possível, como não admitiria risos, por ser, ironicamente (horácio era, entre outras coisas, filósofo), típico de uma arte extremamente filosófica, o surrealismo.

Não posso deixar de lembrar, ao ler essa descrição de Horácio, de Magritte, pintor belga do século passado. O quadro "L'invention collective", de 1934, apresenta uma figura semelhante, mas, ao contrário da descrita por Horácio, começa em cabeça de peixe e termina em corpo de mulher. O quadro é uma inversão da figura da sereia, e, criatura mais terrível, a de Magritte possui órgão sexual humano e um olho que nos observa com desejo e medo, ou que talvez esteja morto.















O quadro, diante da comparação com a descrição de Horácio, serve como resposta da arte moderna ao pensamento clássico, voltado para um modelo "mitológico" de arte.

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Referências:
HORÁCIO, Arte Poética. In: A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1990.

Imagens:
L'invention collective, 1934. (René Magritte)

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4 comentários:

Braulio Tavares disse...

Entre outras coisas Magritte mostra como definimos nossa humanidade da cintura pra cima (reprimindo a parte genital e excretora, etc.). Uma sereia tradicional (tronco de mulher, rabo de peixe) é considerada uma mulher bela e sedutora; mesmo sem órgão sexual ela fala, canta canções, olha, ri, escuta, "se socializa". É a imagem da nossa consciência, da nossa máscara social. Quando Magritte inverte as duas metades, não reconhecemos nesse quadro nada que nos pertença, e mesmo o órgão sexual parece repulsivo porque aliado a uma "máscara" não-humana.

zonda bez disse...

magritte é grande questionador da 'arte de sempre', buscando libertar o significado das amarras do referente: uma mulher-peixe ou vice-versa? o que importa? é uma maça ou um cachimbo? vale mais a imagem que se vê ou o sentido que se cria?
isso também me lembra nossos concretos na batalha poética de extrair das palavras a temível 'casca sígnica' que as envolve....horácio, quem diria, acabou paulicéia.

Scott disse...

Seres tão bizarros como estes encontramos nas pinturas e esculturas de sua época. Por que não lhes causavam espanto? Talvez pelas suas presenças coadjuvantes, em participar de uma história em que um deus, semi-deus ou herói esteja realizando um grande feito.

A figura perdendo a sua função em uma narrativa, Horácio se perguntou onde estava a sua função estética.

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom