Expressionismo: figura humana




já falei aqui sobre a relação entre o cinema e a pintura no que diz respeito ao expressionismo, mais especificamente, à questão do cenário.
Outro elemento expressionista que pode ser observado tanto no cinema quanto na pintura é a deformação da figura humana.
Como o objetivo da obra de arte expressionista é retratar a subjetividade, uma subjetividade carregada de fortes emoções, é comum em quadros e em filmes expressionistas a aparição da figura humana como se estivesse alterada pela emoção, de modo que o que o ser retratado sente é transferido para seu corpo, seu rosto, para a forma física como ela é representada.

Edvard Munch, um dos pioneiros do expressionismo na Europa, possui uma arte que retrata um envolvimento emocional, através principalmente da expressão pessoal do artista, tratando de temas como o medo, a doença (também doença mental), e a morte.
O quadro mais conhecido de Munch é O grito. Nele, o artista consegue transferir a angústia do indivíduo retratado para seu rosto. O homem que grita olha diretamente para o espectador, e seus traços deformados revelam o isolamento, o horror interno.

(I)

A combinação cromática é contrastante em cores fortes, elemento esse que foi perseguido nos filmes expressionistas através do contraste entre o preto e o branco.

(II)

Nesse outro quadro, Munch se inspira em personagens da época (como Drácula) para retratar seres de forma pouco humana. O homem aqui quase não tem orelha, e as mãos da mulher possuem traços tão simples que parecem inumanas.

(III)

Aqui, Munch retrata uma imagem sombria, negra, noturna.
A luz no rosto do caminhante torna os seus olhos mais escuros e menos humanos, semelhantes a dois buracos negros.
As feições são soturnas, de alguém só, isolado do mundo.

Todos esses temas aparecem no filme Nosferatu, de F. W. Murnau, de 1922.
A personagem principal vive isolada do mundo, é um ser noturno. O medo, a doença e a morte são temas que perpassam o filme.



Além de retratar um vampiro (como Munch em A mulher vampiro), Murnau confere a ele um aspecto físico deformado. Os dentes, a postura e o olhar são inumanos, não só por sua natureza sobrenatural, mas para retratar o horror, o medo e o isolamento.
Mais uma vez cinema e pintura se aproximam como se fossem um só meio.

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filme:
Nosferatu, 1922. (dir: F. W. Murnau)

imagens:
(I) O grito, 1893. (Munch)
(II) Mulher vampiro, 1893 (Munch)
(III) Caminhante norturno, 1923. (Munch)

Filmes sobre pintores: Klimt




Conheci Raoul Ruiz primeiro através de sua teoria cinematográfica, principalmente através do livro Poetics of Cinema (que ele assina como Raúl Ruiz, nome que utiliza em vários filmes também). Sua teoria demonstra um entendimento tão forte a respeito de o que é arte, que sempre tive curiosidade de assistir a um filme dele. Embora ele tenha muitos, eles são extremamente raros.

Meu interesse pela pintura vem de quase tão cedo quanto o interesse pelo cinema, e sempre gostei de Gustav Klimt, pintor austríaco que, em uma época de esplendor e decadência em Viena, fez uma arte que rompia com a academia, mas que seguia tanto o esplendor quanto a decadência, principalmente através de suas alegorias, de sua pintura simbolista.

Dois interesses raramente se unem tão bem em uma obra só quanto no filme Klimt, de Ruiz. Interpretado por John Malkovich, Klimt parece real na tela, mas, ao mesmo tempo, pela ilusão decorativista que Ruiz pinta no filme, o artista parece também uma personagem inexistente, uma figura não-real, tão sonhada quanto as personagens de seus quadros. A vida de Klimt é cheia de lacunas, e o filme parece seguir esse “defeito” histórico, relatando de forma um tanto fragmentada a vida do pintor. Seus casos com suas modelos, os filhos que ele não chegou a conhecer, o amor estranho por Emilie Flöge, tudo aparece no filme, mas tudo isso importa menos do que a arte.
A pintura é o foco do filme, que, através da vida do artista, se revela aos poucos. Mudando de estilo tanto quanto Klimt mudou, o filme parece seguir o conceito do artista, em certos momentos se mostrando realista, em outros alterando as figuras humanas com ângulos não-convencionais e deformações da imagem, e ainda colorindo o cenário da forma decorativa comum às pinturas de Klimt.



Pode-se reclamar que o filme não é uma daquelas biografias nítidas e historicamente válidas tão comuns no cinema, no entanto, isso não torna uma obra de arte menor ou maior. O objetivo de Ruiz nesse filme não é relatar a vida de Klimt para que todos possam “ver como foi”. Ruiz quer que seu filme, muito mais do que um documento, seja uma obra de arte, e uma obra de arte à altura de Klimt, seguindo seu modelo artístico. O filme procura um caminho poético, simbólico, em que o nu, o dourado, o decorativismo, e a morte estejam tão presentes quanto na obra de Klimt. Ainda acho que o filme se segura um pouco. Poderia forçar mais os efeitos para se tornar ainda mais semelhante à obra de Klimt. Faltou, por exemplo, uma maior distinção entre os rostos e as vestimentas, seguindo a arte de Klimt, de forma que os rostos fossem mostrados com grande realismo, e as roupas com um tratamento plástico, com dourado e prateado.


(I)


(II)


(III)

O estilo de Ruiz, muitas vezes lento, pode provocar uma aversão no espectador. Mas não se deixe enganar, Klimt é um grande filme, feito por um grande artista, um cineasta que pensa arte, que sabe o que faz, e que procura inovar. Talvez, pelo menos nesse filme, ele não tenha inovado tanto quanto o próprio Klimt, mas o caminho para unir Cinema e Pintura é esse: representar figuras e cenário imitando a obra do artista cuja vida serve de trama para o filme.

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livro:
RUIZ, Raúl. Poetics of Cinema. Paris: Dis Voir, 2005.

filme:
Klimt, 2007. (dir: Raoul Ruiz)

imagens:
(I) Judith I, 1901. (Klimt)
(II) Beethoven Frieze, 1902. (Klimt)
(III) A árvore da vida, 1909. (Klimt)

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*Esse texto foi publicado originalmente na terceira edição do jornal "A Margem", com o título: "Klimt: a pintura no cinema".

Brokeback Mountain: ambigüidade




Já falei aqui sobre um problema na adaptação de uma obra literária para um filme: a metáfora. Outro problema é a ambigüidade.
Perto do final de Brokeback Mountain (tanto filme quanto conto), temos duas possibilidades de destino para Jack: é possível que ele tenha sido assassinado por homofóbicos; ou que tenha sofrido um acidente. Mesmo que o cinema tenha essa tendência à objetividade, ele pode ser ambíguo, e na cena em que Lureen conta a Ennis o que aconteceu com Jack nós vemos essa ambigüidade na tela. Lureen descreve a morte de Jack como tendo sido um acidente, mas, enquanto escutamos as palavras dela, ao telefone, contando o acidente, nós vemos a cena de assassinato, como se passando na mente de Ennis.



Dessa forma, na junção som/imagem, nós temos duas cenas (o acidente e o assassinato), cada uma mostrando uma possibilidade, e as duas bastante plausíveis.

O efeito foi tirado perfeitamente do conto, que assim descreve a conversa ao telefone:

“...ela (Lureen) falou com uma voz calma, sim, Jack estava enchendo um pneu no caminhão numa estrada secundária quando o pneu explodiu. O rebordo estava danificado não se sabe como e, com a força da explosão, o aro voou na cara dele, quebrando-lhe o nariz e a mandíbula, deixando-o inconsciente, caído de costas. Quando apareceu alguém, ele já tinha se afogado no próprio sangue.
Não, pensou Ennis, pegaram ele com a chave de roda.”

A história da chave de roda já tinha sido contada por Ennis, em momento anterior (tanto no filme quanto no conto): um velho homossexual que vivia com outro tinha sido morto com uma chave de roda por homens da região quando Ennis tinha nove anos.
As duas possibilidades caminham lado a lado tanto no filme quanto no conto, embora cada leitor/espectador possa pender para uma das soluções, não há provas nítidas de que uma é certa e outra não. No filme, é a imaginação, pensamento, de Ennis que cria a cena da chave de roda; e também no conto, é o pensamento dele, o que fica explicitado no “pensou Ennis”.

Com esse exemplo (assim como o exemplo da metáfora), vemos que há soluções possíveis para se transpor aspectos difíceis de um romance para um filme, mesmo que não sejam soluções perfeitas.

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filme:
O Segredo de Brokeback Mountain, 2005. (dir: Ang Lee)

livro:
PROULX, Annie. O Segredo de Brokeback Mountain. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006

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*Uma primeira versão desse texto foi publicada originalmente no suplemento 'Augusto' do Jornal da Paraíba de 26 de Novembro de 2006 (nessa edição, o texto saiu com a autoria errada, mas na edição posterior do suplemento foi publicada uma errata, indicando meu nome como autor verdadeiro do texto).