Metáfora na cidade de Sylvia




Há várias formas de se relacionar cinema e poesia. A mais simples delas foi usada principalmente por Tarkovsky, que diz respeito a incluir leitura de poemas num filme. Esse modo possui suas variantes: a leitura pode ser feita por um narrador (como acontece em Tarkovsky), ou pode ser feita por uma personagem dentro da diegese da obra (como em cena de Antes do Amanhecer). Outras formas bastante simples, mas que encerram problemas talvez maiores, são as citações de autores ou de obras, de textos ou de versos, pelas personagens, no meio dos diálogos ou em monólogos. Esse tipo deveria ser mais simples, no entanto, não o é. A questão é que não basta citar algum poema, mas as relações entre a obra citada e a obra fílmica têm que ser claras o bastante para que um leitor/espectador certo (the right reader) possa entender, e ao mesmo tempo o poema citado tem que ter validade no contexto em que é posto. Esse é o problema. Na maioria das vezes a citação momentânea, parcial, é apenas uma citação, sem ter qualquer motivação na obra fílmica, ou então é uma citação cujo motivo se torna difícil de apreender, ou ainda, o mais comum, é uma citação tão óbvia que não acrescenta nada à obra. Não é o que acontece em Tarkovsky, por exemplo, em que o texto completo possui suas próprias motivações, e as relações com a obra são complexas mas não ininteligíveis.

O mais interessante de se relacionar a poesia ao cinema, no entanto, não é recorrer a nenhum desses recursos. Trata-se de fazer uso dos recursos típicos da poesia verbal; usar metáforas, metonímias, rimas visuais, etc., em um filme, equivale a usar esses mesmos recursos em um texto verbal, seja narrativo, seja lírico. Já falei sobre alguns desses recursos no cinema em alguns posts aqui no blog.

Para ficar somente no exemplo mais comum (comum por aparecer mais vezes, não por ser simples), vamos à metáfora. No filme En la ciudad de Sylvia (2007), de José Luis Guerín, há uma cena extremamente poética, e que encerra justamente uma metáfora, acredito, bastante clara.


Nessa cena, pode-se perceber como os cabelos da mulher são comparados metaforicamente às folhas do caderno, e, por extensão, aos cabelos das mulheres nos desenhos. Os desenhos, claro, já são metonímia, ou representações, de mulheres. A metáfora então se complica: as mulheres reais são mulheres representadas, e as representações são mulheres reais. A beleza da metáfora, no entanto, depende do som. Perceba como o som do vento nas páginas do caderno continua mesmo depois do corte para o cabelo da mulher, que também se move com o vento. É o som do papel que se repete nos cabelos reais da mulher que realiza concretamente a metáfora.

Só para se ter idéia do quanto isso é semelhante à poesia verbal, lembremos de poema de João Cabral de Melo Neto, em que o poeta compara, metaforicamente, as folhas do livro às folhas de uma árvore, chegando até a falar mesmo do som do vento repetido nas duas folhas, que são a mesma, e cujo som é responsável pelo sentido, como o som das palavras.


PARA A FEIRA DO LIVRO

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.


A Função Emotiva




Roman Jakobson
elabora, no texto "Lingüística e Poética", faz um quadro dos fatores constitutivos de todo processo comunicativo, e relaciona a cada um deles a uma das funções da linguagem. Como meu objetivo aqui não é examinar todas as funções, mas verificar apenas uma delas no cinema, reproduzo aqui somente o quadro, sem falar de cada uma:

CONTEXO
(REFERENCIAL)

REMETENTE..................MENSAGEM..................DESTINATÁRIO
(EMOTIVA)....................(POÉTICA)...................(CONATIVA)

CONTATO
(FÁTICA)

CÓDIGO
(METALINGÜÍSTICA)

Eu estudo realmente a função poética, centrada na mensagem, principalmente no modo como ela se opõe à função referencial, centrada no contexto, mas quero falar aqui sobre a função emotiva, que tem como foco o remetente.

A função emotiva, ou "expressiva", visa a expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo que está falando. Tende a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou simulada.
Essa função, claro, não se limita à linguagem verbal, e, acredito, pode ser facilmente percebida no cinema, por exemplo, que é essencialmente linguagem visual.
No cinema, determinada cena deve passar determinada emoção ao espectador, de forma que este não apenas saiba qual a emoção que o diretor (o autor, seja ele quem for) quer passar, mas que ele realmente sinta a mesma emoção ao ver a cena.

Seria muito fácil usar aqui cenas dramáticas, com muito choro e muita tragédia, ou o oposto disso, uma cena alegre, divertida, com muitos sorrisos, para passar um sentimento de tristeza ou alegria, respectivamente. Não vou fazer isso. Prefiro escolher um sentimento que não tem nome, algo que não é muito comum, pelo menos não nas discussões do dia-a-dia, mas que, acredito, todo mundo já sentiu.
Para diminuir o risco de que meu leitor não sinta a mesma coisa que eu, e a mesma coisa que, acredito, o diretor tentou passar com a cena, vou reproduzir aqui duas cenas, de dois filmes bastante diferentes, mas que transmitem, pelo menos a mim, a mesma sensação, o mesmo sentimento.
A primeira cena é do filme Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004), de Richard Linklater, e a segunda é de Memórias (Stardust Memories, 1980), de Woody Allen.






Não quero me deter em explicar o tipo de sentimento que se passa aqui, não pretendo mesmo pôr em palavras. Prefiro que o leitor julgue por si só se o sentimento é o mesmo.

A diferença que percebo entre as cenas, embora elas me passem a mesma sensação, é que uma se fundamenta mais nas palavras, na descrição do sentimento, mesmo que este seja fortemente ampliado pelas imagens e pela música, enquanto a outra se fundamenta unicamente nas imagens e na música, mas tendo o sentimento ampliado pelo contexto em que se dá a cena, que, infelizmente, não posso reproduzir aqui (seria necessário ver o filme inteiro, além do filme anterior, Antes do Amanhecer - Before Sunrise, 1995).
Não sei se existe uma relação entre o smoth jazz e esse sentimento, mas sei que ambas as músicas são nesse estilo.
Acho as duas cenas tão parecidas que acredito mesmo que a descrição contida na narração do filme de Woody Allen, mutatis mutandis, vale para a cena de Richard Linklater.

"Foi um desses ótimos dias de primavera. Era domingo e era possível sentir que o verão estava chegando. Eu lembro que naquela manhã eu e Dorrie tínhamos caminhado no parque. Voltamos ao apartamento. Ficamos só lá sentados. Eu coloquei um disco de Louis Armstrong, uma música que eu cresci amando. Foi muito bonito. Eu olhei ao redor e vi Dorrie lá sentada. E lembro que pensei no quanto ela era maravilhosa, e no quanto eu a amava. E acho que foi a combinação de tudo. O som da música e a brisa, e como Dorrie estava linda. E por um breve momento, tudo pareceu se encaixar perfeitamente. E eu me senti feliz, de uma forma quase indestrutível. É engraçado. Aquele simples momento de contato, me tocou de uma forma muito profunda."

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Filmes:
Memórias (Stardust Memories, 1980) - Woody Allen
Antes do Pôr-do-Sol (Before Sunset, 2004) - Richard Linklater

Livros:
Lingüística e Comunicação - Roman Jakobson

My Favorite Things




No musical A Noviça Rebelde (título infeliz para o filme The Sound Of Music, 1965), de Robert Wise, as músicas que mais se destacam são a canção título, "The Sound Of Music", e "My Favorite Things". A prova disso está no próprio filme, pois são as frases melódicas dessas canções as que mais se repetem em toda a obra, arrisco dizer, principalmente as de "My Favorite Things", que, de vez em quando, aparecem por trás das cenas não cantadas. Não preciso dizer que "My Favorite Things" é a minha preferida do filme. A melodia é extremamente bela, a letra é interessante, e o arranjo é muito bem feito, perfeitamente encaixado nas cenas em que aparece.

MY FAVORITE THINGS

Raindrops on roses and whiskers on kittens
Bright copper kettles and warm woolen mittens
Brown paper packages tied up with strings
These are a few of my favorite things

Cream colored ponies and crisp apple streudels
Doorbells and sleigh bells and schnitzel with noodles
Wild geese that fly with the moon on their wings
These are a few of my favorite things

Girls in white dresses with blue satin sashes
Snowflakes that stay on my nose and eyelashes
Silver white winters that melt into springs
These are a few of my favorite things

When the dog bites
When the bee stings
When I'm feeling sad
I simply remember my favorite things
And then I don't feel so bad

Essa música é retomada de forma um tanto diferente em outro musical: Dançando no Escuro (Dancer in The Dark, 2000), de Lars von Trier.
Dançando No Escuro é um musical tão triste que rivaliza - e às vezes ganha - com os mais tristes: Jesus Cristo Superstar; West Side Story, The Fiddler On The Roof; O Fantasma da Ópera (cito esses agora de memória).
A canção de The Sound Of Music aparece aqui através de um dos aspectos da trama: a personagem principal (interpretada por Björk) está participando de uma montagem teatral de The Sound Of Music.
A mesma música é usada em contextos completamente diferentes nos dois filmes. No primeiro deles, The Sound of Music (um filme extremamente feliz, embora conte uma história - real - que não deveria ser tão feliz assim), a cena em que aparece é divertida, animadora, alegre de se dar pulos em cima da cama.


No segundo, Dançando no Escuro, a cena é triste, trágica, e com uma falsa alegria. A personagem está presa, prestes a ser enforcada, mas espera um telefonema a respeito de um possível novo julgamento. A alegria do final da cena aumenta a tristeza da cena, pois é uma falsa alegria, um momento em que a esperança aparece simplesmente para trazer algo pior logo em seguida. O que me interessa mais de perto, no entanto, é o arranjo, e a forma como a música é realizada na cena.


Em The Sound Of Music, a música tem um arranjo leve e rápido, a cena se dá com crianças pulando numa cama, dançando, sorrindo, pensando em coisas boas. Em Dançando no Escuro, Selma (a personagem de Björk), está sozinha, numa prisão estéril, cantando à capela, de forma lenta e pesada. Tudo muda: o que era felicidade se transforma em tristeza com a maior facilidade, e é isso que o filme vem mostrar logo a seguir. Da mesma forma que a alegria de "My Favorite Things" se transforma em tristeza no arranjo da cena em Dançando no Escuro, a alegria do final da cena se transforma em tristeza maior ainda, sob a ameaça de Selma perder aquilo pelo qual tinha lutado.
A letra é a mesma, mas o arranjo, os sons, a interpretação, tudo em Dançando no Escuro transforma o otimismo de "My Favorite Things" em uma tentativa vã de se alegrar.
Um detalhe merece atenção: em The Sound Of Music, a janela bate com a tempestade fazendo um barulho alto e abafado. Maria (a personagem principal, interpretada por Julie Andrews), fecha a janela, deixando a tempestade isolada do lado de fora. Em Dançando no Escuro, Selma pula de cima da cama para o chão (só o fato de ela estar em cima da cama como Maria já corrobora o que vou dizer), fazendo um barulho análogo ao da janela.
As cenas se mostram tão parecidas que só se pode entender uma coisa da cena de Dançando no Escuro: tristeza e alegria são (usando um lugar-comum, e simplificando o significado) duas faces da mesma moeda.

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Filmes:

Filmes sobre pintores: Goya en Burdeos




O filme Goya (Goya en Burdeos, 1999), de Carlos Saura, consegue realizar plasticamente aquilo que As sombras de Goya (Goya’s ghosts, 2006) tentou fazer na temática: reproduzir os elementos mais importantes da obra do pintor espanhol Francisco Goya.
Os temas de Goya e o momento histórico que ele viveu são, claro, muito importantes. Mas, numa obra cinematográfica (e, sendo assim, artística) sobre um artista (principalmente em se tratando de um artista plástico), acredito que os aspectos próprios da sua arte em si, do que fez dele um artista excepcional, são mais importantes para serem perseguidos.
Não me entendam mal, sou um profundo admirador de Milos Forman, e gosto muito do seu filme sobre o pintor, mas prefiro quando filmes sobre artistas (principalmente artistas plásticos) tentam reproduzir algo da sua arte na tela.
Assim é o Goya de Saura, que reflete uma plasticidade apoiada principalmente nos contrastes fortes entre luz e sombra, claro e escuro, tão comuns na obra do pintor. A liberdade que Goya deu à pincelada foi precursora da arte moderna, tornando possível a criação dos principais movimentos da pintura moderna: o impressionismo, o expressionismo e o surrealismo.
A narrativa do filme, no entanto, apoiada em movimentos para frente e para trás no tempo, não busca evoluir seguindo o desenvolvimento da pintura de Goya, com um começo mais luminoso, mais claro, seguido de fortes contrastes entre claro e escuro, até que a predominância do negro se tornasse total, em sua fase conhecida como “pintura negra”.

(I)
(II)

Em alguns momentos do filme, como nas imagens abaixo, o enquadramento e a iluminação parecem resgatar o estilo do pintor, reproduzindo o modelo mais comum em seus quadros: o fundo negro com a figura humana, central, iluminada. Compare imagens do filme com quadros de Goya para ver a semelhança.

(Imagem do filme Goya en Burdeos)
(Imagem do filme Goya en Burdeos)
(III)
(IV)

Goya ficou surdo, assim como seu contemporâneo Beethoven. Talvez tenha sido isso que fez sua pintura se voltar para algo mais obscuro, e é essa a visão perpetrada no filme, como um todo: um ambiente de escuridão.
Filmes como Goya, ao contrário de As sombras de Goya, necessitam de um espectador que conheça a obra do pintor, que saiba um pouco de seu estilo, e reconheça, no mínimo, seus principais quadros. Um momento do filme deixa isso claro.

(Imagem do filme Goya en Burdeos)

A um espectador que não sabe que esse fundo é um quadro de Goya, pode parecer que o cenário é mal feito, pois a imagem ao fundo não simula com realismo um cenário natural, ficando semelhante a uma tela colocada de improviso no fundo da cena. Sabendo-se que se trata de um quadro do artista, fica claro que a intenção era exatamente essa: unir o realismo dos atores com a ilusão do fundo, de forma que ambos os elementos fossem percebidos separadamente.
Goya é um filme artístico, não histórico, como As Sombras de Goya. A invasão de Napoleão e o problema da inquisição na Espanha aparecem apenas como temas para ilustrar a arte do pintor.



A arte de Goya é colocada plasticamente na tela, mas é também elevada a um grau mais moderno em determinados momentos, como na cena acima, demonstrando de Saura não se limita a reproduzir o estilo do artista, mas honrá-lo, buscando uma evolução para além do que Goya fez, mas respeitando sua obra.

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Filmes:
Goya (Goya en Burdeos, 1999, dir: Carlos Saura)
As sombras de Goya (Goya's ghosts, 2006, dir: Milos Forman)

Quadros:
(I) O Colosso, 1808-1812 [óleo sobre tela], Francisco Goya
(II) Saturno, 1820-1823 [óleo sobre muro passado à tela], Francisco Goya
(III) A maja nua, 1798-1800 [óleo sobre tela], Francisco Goya
(IV) Três de maio em Madri, 1814 [óleo sobre tela], Francisco Goya

Versão americana: anjos e homens




Em Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin/Wings of Desire, 1987), Wim Wenders consegue retratar um mundo subjetivo de forma quase inigualável no cinema. O filme começa em preto & branco, e com câmeras deslizantes, escorregadias, que denunciam um olhar diferente diante do mundo, um olhar sobrenatural. Esse olhar, descobrimos logo no início, é o olhar de um anjo, ou melhor, dos anjos. A montagem quase sem cortes, seguindo um caminho como de um ser individual, adentrando os lugares mais impróprios para uma câmera ou um ser humano, os pensamentos das pessoas nas vozes em off, a junção do som com a imagem, tudo isso compõe a visão do anjo em relação à Terra, ao mundo dos homens.
As crianças têm um papel fundamental no filme como metáfora da inocência e do acreditar em fenômenos metafísicos. Apenas elas vêem os anjos, mesmo que não tenham consciência de que eles são anjos.



O filme continua mostrando a vida dos anjos e seu olhar diante da humanidade até que um dos anjos que o espectador acompanha mais de perto parece se interessar mais por uma mulher do que por todos os outros humanos. Essa mulher é uma acrobata em um circo. Sua primeira aparição é fantasiada de anjo, no alto, balançando como se voasse, como se fosse um anjo. Talvez surja daí o interesse maior do anjo nela. Depois desse momento, começam a aparecer imagens coloridas, aos poucos, mas que se tornam cada vez mais freqüentes. O colorido simboliza o mundo humano como visto por nós, e essas aparições do colorido indicam a transformação paulatina do anjo em ser humano.
Quando finalmente ele se torna um homem mortal, o filme passa a ser colorido o tempo inteiro. Agora vemos realmente o mundo através de um ser humano, e ele é comum. No entanto, o que percebemos (juntando os diálogos, a história e as imagens e os sons) é que o mundo dos anjos é estranho, diferente, mas apático, enquanto o mundo terreno é comum, normal, mas cheio de vida, de cor, de sensações.
A relação do anjo transformado em homem com a acrobata por quem ele se apaixona parece ser algo divino, predestinado, de modo que os dois se reconhecem automaticamente, sem que exista drama no seu início de relacionamento.
No final, temos a narração do anjo, que deixa a solução aberta, apenas com a menção de que algo aconteceu, mas sem dizer ou mostrar o quê.

Na versão americana, Cidade dos Anjos (City of Angels, 1998), de Brad Silberling, temos os mesmos aspectos narrativos do filme de Wim Wenders, mas se percebe uma busca por agradar determinado público. O primeiro ponto negativo da versão americana é não utilizar a imagem em preto & branco, nem procurar exprimir o mundo dos anjos através da câmera. Todas as cenas são vistas de forma objetiva, de modo que não há distinção entre o mundo dos anjos e o dos homens. A câmera objetiva o tempo inteiro e a edição tradicional, mostrando um ponto de vista fragmentado não permitem uma visão de um ser individual, subjetiva, mas uma visão objetiva do mundo.
A mulher por quem o anjo se apaixona, de acrobata, é transformada em médica, o que talvez seja até uma boa mudança, já que a relação entre o anjo e ela parece mais afeita pela personalidade, pelo fato dela também salvar vidas, como ele, e não por uma semelhança “física”.



No entanto, o filme é inteiramente comum, transformando uma história sobre a beleza do mundo através de um olhar de fora em um simples romance dramático, seguindo todos os moldes preestabelecidos na indústria hollywoodiana. As cenas que mostram o anjo apaixonado pela médica chegam a ser ridículas, pois ele demonstra um interesse sexual (percebido por culpa da objetividade da imagem) por ela.
O romance deles tem início e desenvolvimento da mesma forma que quase todos os filmes românticos americanos. Os dois se conhecem, paqueram, conversam, se divertem, e começam a ter seus conflitos, por causa da natureza estranha dele.
As explicações começam a aparecer nos diálogos, e não sobra nada para o espectador entender, tudo é explicitado, inclusive os passos para que um anjo possa se tornar humano. A “queda” como símbolo se perde aqui, pois se torna uma queda real, um símbolo psicológico para o anjo, e não uma metáfora para a condição de anjo caído na Terra, como é em Asas do Desejo.
A versão americana chega até a não fazer sentido: quando o anjo caí, e se torna humano, ele fica maravilhado com a aparição das cores. Ora, e as cores não estavam sempre lá? Somente agora nós sabemos que os anjos não vêem colorido. Toda a transformação da realidade é extinta.
O que se percebe ao confrontar os dois filmes é, de um lado, a objetividade exagerada do cinema tipicamente americano e, de outro, a subjetividade de um cinema preocupado com a arte e com o fazer artístico.
Cidade dos Anjos não é um filme ruim, é agradável e emocionante em alguns momentos, mas Asas do Desejo é arte de verdade, arte que fica até um tanto diminuída se levarmos em conta as explicações da versão americana, como é o caso do final, que se reduz a uma tragédia sem sentido.

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Filmes:
Asas do Desejo (Wim Wenders, 1987)
Cidade dos Anjos (Brad Silberling, 1998)

Os Mutantes e 2001




No segundo disco dOs Mutantes, lançado em 1969, há uma música chamada "Dois mil e um". Acho extremamente óbvio que se trata de uma referência ao filme 2001: uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick; não só pela data de lançamento do filme, 1968, e pelo título, mas também pela letra da canção e, principalmente, pelos sons que passam pela música aos dois minutos de duração.

Dois Mil e Um by Os Mutantes
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O título da música e o ano em que foi composta já permitem que se procure uma relação. O "Dois mil e um" da música faz referência direta ao "2001" do filme. O filme, tendo sido lançado em 1968, causou grande impacto no mundo todo, e com certeza foi utilizado como inspiração para a composição da música, lançada em álbum de 1969.

Dois Mil e Um
(Os Mutantes)


Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia

Eu quase posso apalpar
A minha vida que grita
Emprenha e se reproduz
Na velocidade da luz
A cor do céu me compõe
O mar azul me dissolve
A equação me propõe
Computador me resolve

Amei a velocidade
Casei com sete planetas
Por filho, cor e espaço
Não me tenho nem me faço
A rota do ano-luz
Calculo dentro do passo
Minha dor é cicatriz
Minha morte não me quis

Nos braços de dois mil anos
Eu nasci sem ter idade
Sou casado, sou solteiro
Sou baiano e estrangeiro
Meu sangue é de gasolina
Correndo não tenho mágoa
Meu peito é de sal de fruta
Fervendo no copo d'água

O que interessa realmente, que pode escapar ao ouvinte/espectador desatento, é como a letra remete o tempo inteiro aos temas do filme.
Vejamos, seguindo conselho de François Rastier [in: GREIMAS, A. J. (ed.). Ensaios de semiótica poética. São Paulo: Cultrix, 1976.], alguns sememas da letra (aqui tratada como puro texto verbal, não-associada à música) que podem nos transpor para o filme:

astronauta = bastante óbvio para quem viu o filme;
futuro = 2001, no filme, é futuro;
vida se reproduz = um dos temas do filme é a reprodução, principalmente de forma metafórica na última parte do filme, em que a nave passa por um túnel e chega a um lugar desconhecido onde ocorre uma espécie de divisão, que dá origem a um novo ser, com aspecto de feto;
computador = HAL9000;
cicatriz = forma uma ligação indireta com o filme 2001, que, como "odisséia", possui um Ulisses que viaja e volta para casa completamente mudado (e que, na Odisséia, é reconhecido através da cicatriz);
minha morte não me quis = a imortalidade através da transformação em outro ser, sob uma aparente morte.

Com essas pequenas noções já se pode reler a letra fazendo outras relações com o filme e com os temas que o filme aborda.
A questão mais interessante, no entanto, é musical. Entre dois minutos e dois minutos e meio, aproximadamente, a música se torna bastante parecida com a trilha do filme na cena da viagem, em que o astronauta passa por um túnel no espaço até se ver dentro de um quarto de hotel. Compare a trilha de 2001, de György Ligeti, com a parte citada da música dOs Mutantes.

2001 soundtrack by György Ligeti
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Os Mutantes tinham nítidas influências de bandas estrangeiras, principalmente inglesas, como Beatles e Rolling Stones, mas se deixavam influenciar também por outros campos, e refletiam isso em suas músicas, como é demonstrado aqui, em relação ao cinema.

Eu, robô




Pela terceira vez falo de O Mágico de Oz. Bem, aqui, nem tanto, mas nessas duas postagens anteriores, sim: post 1, post 2. Nessa segunda postagem sobre O Mágico de Oz, contei as histórias individuais do Espantalho, do Homem-de-Lata, e do Leão Covarde. Aqui, me detenho no Homem-de-Lata, que, para mim, é o mais interessante dos três. O Homem-de-Lata não é um robô, ele é um ciborgue, mas um ciborgue diferente. Ele começa como homem, homem comum, igual a todos os outros, e, aos poucos, vai tendo partes suas substituídas por partes de metal. Isso constitui, pelo que sei, a natureza do ciborgue: um ser humano com partes cibernéticas, mecânicas, ou sei lá o quê; o que é diferente de um robô, que é, desde sempre, um ser mecânico, artificial. Vale lembrar que ainda existe o andróide, que, como o robô, é desde sempre artificial, mas esse, diferentemente do robô, possui características humanas, como: consciência, aspectos físicos, e outros (um andróide é, aparentemente, igual a um ser humano).
Sempre gostei de robôs, acho que desde que tive um robô arthur (um dos meus brinquedos preferidos na infância).


(Robô Arthur)

Uma comparação inevitável para mim é entre o Homem-de-Lata e O Homem Bicentenário (The Bicentennial Man, 1976). No romance, de Isaac Asimov (e também no filme estrelado por Robin Williams), um robô que devia ser um servo começa a demonstrar criatividade, emoções e consciência. Incentivado pela família, ele começa a desenvolver esses dotes, e dá início a uma busca por se tornar humano. Aos poucos, ele vai substituindo suas partes robóticas por partes orgânicas, até se tornar completamente humano, e morrer.


(O Homem Bicentenário em The Bicentennial Man, 1999)

A transformação do Homem Bicentenário é exatamente oposta à do Homem-de-Lata, mas ambos procuram a mesma coisa: tornar-se mais humano. O Homem Bicentenário quer ser aceito como humano, e o Homem-de-Lata quer ter um coração, quer sentir, quer ter sentimentos. O estranho disso é que, originalmente, o Homem-de-Lata é um ser humano, ele tem sentimentos, mas deixa de ter (ou acha que deixa), enquanto o Homem Bicentenário não é humano, mas desenvolve sentimentos, aos poucos, e por ter esses sentimentos, quer se tornar humano.

O Robô by Tom Zé
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A mesma vontade de se tornar humano se repete na música "O Robô", de Toquinho e João Carlos (cantada por Tom Zé), do disco infantil Casa de Brinquedos. Esse disco foi outro companheiro de infância, e provavelmente também responsável pelo meu gosto por robôs. A letra repete os elementos já aqui discutidos: o robô que quer ser humano, que não consegue ter emoções, que não tem coração. A solução desse robô é brincar com as crianças; penso, por elas conseguirem, em sua imaginação, dar vida, uma vida humana, àquele robô. A música em si tem vários aspectos interessantes: os sons são meio repetidos, como se fossem mecânicos, no começo, principalmente, mas também nos vocais por trás do canto das crianças. A própria voz do robô também tem "tiques" de robô, algo que torna muito interessante a intersecção sêmica quando o robô diz "defeito" com um defeito na voz, uma repetição do "to" final.


O Robô
(TOQUINHO E JOÃO CARLOS)

Quanta coisa ele conhece
Sabe a tudo responder
E o que tanto o entristece
É ser humano ele não ser.

Com suas veias de metal
Raciocina e sabe andar
Mas o que lhe faz tão mal
É não sorrir e nem chorar

Sou Robô e a vida é dura
Quando se é feito de lata
Sou sem jogo de cintura
E a minha voz é muito chata

Vou ter sempre algum defeito
Já perdi a esperança
Pelo Homem eu fui feito
A sua imagem e semelhança

Nunca tem nenhuma dúvida
Incansável e seguro
Por tudo isso ele é considerado
O Homem do Futuro

Ser o Homem do futuro
Não me anima muito não
Todos saberão de tudo
Mas como eu sem coração

Os adultos sempre sérios
Sabem só me programar
Se eles não brincam com ele
Com criança eu vou brincar

Claro que os robôs aqui citados não esgotam, de forma alguma, os mais variados robôs e similares na arte. O interessante é que eles sempre têm alguma relação com o ser humano, quase sempre um "sentimento" de veneração, como se nós, para eles, fôssemos deuses (o que é bastante óbvio, já que eles são criação humana); como dizem os versos de Toquinho: "Pelo homem eu fui feito/A sua imagem e semelhança".

Filmes sobre pintores: Sede de viver




Sede de Viver
(Lust for life, 1956, dirigido por Vincente Minnelli) é um dos filmes que adaptam a vida de Vincent Van Gogh para o cinema (sobre os outros falo um dia, hoje fico só com ele). É uma adaptação de segunda ordem, pois é originado de um romance que trata da vida de Van Gogh: Lust for Life (de Irving Stone). Trata-se de um filme típico dos anos 1950, talvez já com traços do cinema dos anos 1960. As atuações, os diálogos, a direção, até a montagem, cheia de sobreposições nos cortes, todos esses aspectos são notavelmente um reflexo do cinema da época. O filme ganha, realmente, no tratamento dos cenários, que sempre procuram refletir os ambientes pintados por Van Gogh, embora sem espelhar a plasticidade do pintor, mas sim realizando uma reprodução realista dos temas escolhidos por Van Gogh.


(Imagem do filme)


(Os comedores de batatas, 1885)

Quando aparecem os comedores de batatas, no filme, falta à imagem a escuridão e a sujeira tão característica do quadro, bem como a escuridão da fraca iluminação, que deforma os rostos com suas sombras fortes e alto contraste. A aproximação que importa ao filme, no entanto, não é técnica; ele prefere aproximar o conteúdo pretendido por Van Gogh, que era fazer uma exaltação do trabalho manual, junto ao alimento, pago com esse trabalho. A imagem adquire sentido social, dentro do contexto do filme, particularmente dessa época da vida do artista, na Holanda.


(Imagem do filme)


(A ponte em Langlois com lavadeiras, 1888)

Aqui, vemos a ponte de Langlois, que Van Gogh pintou várias vezes. Faltam, da mesma forma que na imagem anterior, as características básicas do quadro: o contraste entre o amarelo e o azul, a água com um azul forte que ajuda no movimento das lavadeiras, os tons fortes e vivos da pintura. O que vemos no cenário do filme é apenas a reprodução realista do objeto pintado por Van Gogh, não vemos sua visão do objeto, algo que fica mais concreto nos diálogos, nas falas da personagem Vincent, no filme, talvez da mesma forma que sua visão de mundo fica mais clara nas cartas que o artista escreveu.


(Imagem do filme)


(O café de noite, 1888)

Vemos, aqui, com grande clareza, o cuidado imenso da direção de arte do filme em reproduzir perfeitamente o quadro de Van Gogh. Mais uma vez temos o reflexo realista da pintura do artista, como uma recriação de uma recriação. Van Gogh recria o ambiente original, real, em seu quadro, e o diretor de arte recria o quadro em ambiente real, como uma adaptação de uma adaptação do mundo real. Algo que se assemelha à própria condição do filme, uma adaptação de um romance que é uma adaptação de uma vida real.


(Imagem do filme)


(O quarto de van Gogh em Arles, 1889)

Na imagem do quarto de Van Gogh, vemos a mesma falta das imagens anteriores: as cores fortes e contrastantes, a perspectiva alterada, e a pincelada grossa e crua. Talvez agora se possa perceber que o filme não pretende mostrar o mundo como visto pelo artista, mas mostrar como o artista transformava o mundo que via. Confrontando essas imagens realistas, que reproduzem os temas de forma comum, aparecem imagens dos quadros de Van Gogh, como se o filme procurasse mostrar, realmente, o quanto o mundo real é diferente do mundo pintado pelo artista, do mundo como visto por Vincent. A sensação de tranqüilidade, de paz, de harmonia, no entanto, pode ser vista mesmo na reprodução realista do filme, talvez pela ligação que nós já fazemos automaticamente com o quadro.


(Imagem do filme)


(Campo de trigo com corvos, 1890)

Mais uma vez vemos uma composição quase perfeita, uma reprodução dentro do mundo real do mundo de Van Gogh. E podemos perceber, com mais clareza, como o artista alterava o mundo por causa de sua percepção, por causa de seus problemas internos. O céu, no mundo real (no filme), é claro, alegre, até. O campo de trigo é simétrico, bem alinhado, e calmo. No quadro, o céu é claro por trás, mas manchas escuras tomam a imagem, como uma escuridão que toma conta da luz; o campo de trigo é revolto, parece estar em convulsão; os caminhos são tortos, confusos. Os corvos aparecem do nada, negros, roubando a beleza da imagem. Era realmente o último quadro de Van Gogh, um dos mais belos.

O passado do Espantalho, do Homem-de-Lata e do Leão Covarde




Já falei aqui sobre O Mágico de Oz. Como falei pouco sobre as diferenças entre romance e filme, vou tratar de pelo menos uma agora: as histórias individuais do trio. As histórias do Espantalho, do Homem-de-Lata, e do Leão Covarde são mínimas no filme de 1939; na verdade, elas não estão realmente lá, existindo apenas um embrião de história, que serve como desculpa para cada um deles procurar algo que falta. Só para lembrar: o Espantalho quer um cérebro (metáfora para inteligência), o Homem-de-Lata quer um coração (metáfora para sentimento), e o Leão Covarde quer coragem (metáfora para... bem, leia o post anterior).

Existem várias outras versões de O Mágico de Oz, como a versão de Sidney Lumet, de 1978, com Diana Ross como Dorothy e Michael Jackson como o Espantalho (isso mesmo, não estou mentindo, isso existe, olhe aqui.). Em uma delas, a mini-série Tinman (de 2007), as histórias de cada um são transformadas, permanecem tão interessantes quanto as do livro, mas são bastante diferentes, acompanhando o esquema da mini-série, que é realmente uma releitura adulta para o clássico O Mágico de Oz (uma versão sem músicas, ao contrário do filme de 1939 e de outras versões).


Como as histórias individuais foram excluídas do filme de 1939 (a versão mais conhecida), vou recontar aqui rapidamente cada uma, tal qual elas figuram no romance, para que o leitor se situe melhor.


O Espantalho foi criado por dois Munchkins, que logo o colocaram preso em um pau para espantar os corvos. Ele se sente só, mas orgulhoso de ser tão útil, pois espanta os corvos. Um corvo, no entanto, pousa no ombro dele e diz que não foi enganado, que percebe que ele não é um homem. Os corvos começam a comer todo o milho, e ele fica triste, achando que não é um homem assim como os outros. Um corvo então sugere que se ele tivesse um cérebro, ele seria um homem igual aos outros.

O Homem-de-Lata era um lenhador, um Munchkin como todos os outros. Ele se apaixona por uma Munchkin, que promete se casar com ele assim que ele tiver dinheiro para comprar uma casa para eles dois. A garota vivia com uma velha que usava ela para fazer os serviços da casa, e não queria que ela se casasse. A velha vai até a Bruxa Má do Leste, e promete duas ovelhas e uma vaca se ela impedir o casamento. A bruxa coloca um encanto no machado do lenhador, e quando ele vai cortar uma árvore, o machado decepa uma de suas pernas. Ele vai até um ferreiro, e o ferreiro faz uma perna de lata para ele. O lenhador continua tentando cortar árvores, pois ele precisa do dinheiro para comprar a casa. Cada vez que ele tenta, o machado corta um pedaço dele e ele precisa substituir por uma parte de lata. Quando ele perde o corpo, que é substituído por um corpo de lata, ele perde também o coração, e com ele o amor pela garota. Ele precisa então de um coração para voltar a amá-la.

O Leão Covarde não tem exatamente uma história. Ele é simplesmente um leão covarde que precisa de coragem para se tornar o rei da selva.

Essas histórias não funcionam apenas como sub-plots, não são apenas histórias paralelas, elas têm, realmente, um motivo na narrativa, que seria, principalmente, determinar a personalidade de cada um de acordo com suas necessidades, de forma que a busca de cada um fica justificada no próprio bojo da narrativa. Essas histórias também funcionam para fazer um paralelo com a criação de personagens na literatura, em particular em relação ao Espantalho e ao Homem-de-Lata.

O Espantalho é criado do nada, com um único propósito: espantar os corvos do campo de trigo. Mas a personagem se desenvolve, cria vida, evolui e se transforma em uma das personagens principais, não ficando apenas no campo da figuração.

O Homem-de-Lata surge não do nada, como o Espantalho, mas de um ser humano, como uma personagem que é baseada em uma pessoa de verdade. E assim como a personagem tirada da vida, ela cresce, evolui e foge da vida mortal, e se torna personagem pura, distante (quase sem laços) do ser humano inicial.

Quanto ao Leão Covarde, acredito que ele serve como alegoria das alegorias: a transformação de animais em personagens humanizadas. Claro que são muito mais interessantes o Espantalho e o Homem-de-Lata; como já vimos no texto anterior, o Leão é sempre diferente, está sempre fora dos esquemas criados pelos outros dois, ele serve mais como exceção para comprovar a regra. É interessante perceber como inclusive na primeira capa do livro, da primeira edição, o Leão já aparece deslocado, não só à parte, mas desenhado de maneira diferente, completamente estilizado, ali no topo, no nome OZ, longe dos outros.



O Talentoso Ripley: a arma pela vítima




Nunca li nada de Patricia Highsmith, mas, não sei por qual motivo, vi a maioria dos filmes baseados em livros dela. Suas histórias (pelo menos as que foram filmadas) são típicas de romances policiais, e não parecem conter grandes méritos artísticos. Deve ter sido Hitchcock o responsável por torná-la famosa (pelo menos no ramo cinematográfico), quando fez Pacto Sinistro (Strangers In A Train, 1951). Há vários outros filmes, além desse, mas me interessam aqui apenas os filmes da série Ripley.
O primeiro deles foi O Sol Por Testemunha (Plein Soleil, 1960), de René Clément, com Alain Delon, baseado no romance O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley, 1955). Depois veio O Amigo Americano (Der Amerikanische Freund, 1977), de Wim Wenders, no qual Ripley foi interpretado por Dennis Hopper, e que é baseado no romance Ripley's Game. O terceiro, meu preferido, foi O Talentoso Ripley (The Talented Mr. Ripley, 1999), de Anthony Minghella, baseado no romance homônimo, em que Matt Damon faz o papel de Tom Ripley. Logo em seguida veio mais uma adaptação de Ripley's Game, O Retorno do Talentoso Ripley (Ripley's Game, 2002), protagonizado por John Malkovich. O último é Ripley No Limite (Ripley Under Ground, 2005), baseado no romance de mesmo nome, com Barry Pepper.
Acho que desses todos só os três primeiros merecem ser vistos. E se for ver apenas um, veja O Talentoso Ripley, de Minghella.
Eu nunca tinha assistido O Sol Por Testemunha, embora soubesse se tratar de uma adaptação do romance O Talentoso Ripley. Resolvi assistir semana passada. É um filme bom, mas não tão bom quanto o de Minghella. O Sol Por Testemunha começa mal, já no meio da história, sem todo o preparativo de O Talentoso Ripley, que constrói a personagem tão bem. A história do filme de Clément se resume a um assassino tentando não ser descoberto. Nisso, até que o filme ganha fôlego na parte final, e se torna bom, com momentos realmente interessantes. O Talentoso Ripley, no entanto, além de todo o preparativo de construção da personagem e do relacionamento entre Tom e Dickie Greenleaf, que forma o caráter dele, e demonstra os talentos dele, há os assassinatos, que me parecem mais bem formulados, mais bem pensados, e as escapadas, que são mais bem costuradas.
Para ilustrar o que venho dizendo, vale comparar uma cena de ambos os filmes, além da mesma cena no romance de Highsmith.

* No romance:

"Freddie bateu na porta. A maçaneta virou. Estava fechada. Tom pegou um cinzeiro de vidro pesado. Ele não conseguia atravessar o cinzeiro com a mão, e teve que segurar pela ponta. Ele tentou pensar por apenas mais dois segundos: não havia outra saída? O que ele faria com o corpo? Ele não conseguia pensar. Essa era a única saída. Ele abriu a porta com a mão esquerda. A mão direita com o cinzeiro estava afastada para trás e para baixo.
Freddie entrou na sala. 'Escuta, você poderia me dizer-'
A ponta curvada do cinzeiro bateu no meio de sua testa. Freddie pareceu tonto. Então seus joelhos se dobraram e ele caiu como um touro que levou uma martelada entre os olhos. Tom fechou a porta com um chute. Ele esmagou a ponta do cinzeiro na parte de trás do pescoço de Freddie. Ele bateu no pescoço de novo e de novo, com medo de que Freddie pudesse estar se fazendo e que um de seus braços enormes pudesse de repente circular suas pernas e puxá-lo para baixo. Tom deu um golpe de relance na cabeça dele, e apareceu sangue. Tom se amaldiçoou. Ele correu e pegou uma toalha do banheiro e colocou embaixo da cabeça de Freddie. Então ele procurou o pulso de Freddie. Ainda estava lá, fraco, e parecia desaparecer enquanto ele tocava como se a pressão de seus dedos parasse ele. No segundo seguinte ele se foi."¹

Percebe-se que a cena, no livro, acontece de forma bruta, priorizando a violência, a raiva, o sangue. No campo metafórico, há apenas a pobre comparação entre a queda da vítima e um touro abatido. O objeto que ele usa é um pesado cinzeiro, que não possui interesse maior do que ser simplesmente uma arma.

* Em O Sol Por Testemunha:



Aqui, em O Sol Por Testemunha, a cena se dá de forma parecida com o romance, reduzindo um pouco a violência, e deixando Ripley um tanto absorto, distante, frio. A metáfora, acredito, fica por conta do frango no chão. Ele usa uma estátua de Buda, algo interessante, mas a estátua continua somente como um objeto usado por improviso para o assassinato, assim como o cinzeiro no romance.

* Em O Talentoso Ripley:



No filme de Minghella, além da cena ser mais emocionante, mais brutal, há o objeto utilizado e, mais, a forma como ele é usado para criar sentido. O objeto é uma estátua de uma cabeça humana, algo figurativo, assim como em O Sol Por Testemunha, mas, aqui, o que importa é a presença, no final, do objeto em si. O corpo aparece caindo ao chão, mas o que fica é a estátua, como metonímia do morto. O sangue fica na cabeça da estátua, como uma metonímia da cabeça da vítima, uma metonímia que pode ser traduzida como "a arma pela vítima".
São momentos belos como esse, de pura poesia, que fazem de O Talentoso Ripley um grande filme, o melhor de Mighella.

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¹ "Freddie knocked on the door. The knob turned. It was locked. Tom picked up a heavy glass ash-tray. He couldn't get his hand across it, and he had to hold it by the edge. He tried to think just for two seconds more: wasn't there another way out? What would he do with the body? He couldn't think. This was the only way out. He opened the door with his left hand. His right hand with the ash-tray was drawn back and down.
Freddie came into the room. 'Listen, would you mind telling-'
The curved edge of the ash-tray hit the middle of his forehead. Freddie looked dazed. Then his knees bent and he went down like a bull hit between the eyes with a hammer. Tom kicked the door shut. He slammed the edge of the ash-tray into the back of Freddie's neck. He hit the neck again and again, terrified that Freddie might be only pretending and that one of his huge arms might suddenly circle his legs and pull him down. Tom struck his head a glancing blow, and blood came. Tom cursed himself. He ran and got a towel from the bathroom and put it under Freddie's head. Then he felt Freddie's wrist for a pulse. There was one, faint, and it seemed to flutter away as he touched it as if the pressure of his own fingers stilled it. In the next second it was gone."

O Espantalho, o Homem-de-Lata, o Leão Covarde e o Samurai




Em O Mágico de Oz (The Wonderful Wizard of Oz), de L. Frank Baum, há três personagens que acompanham a garota Dorothy através do mundo de Oz, todo mundo os conhece: o Espantalho (the Scarecrow), o Homem-de-Lata (eu sempre pensei que o nome dele em inglês fosse “the Tinman”, mas, como ele é um lenhador, o nome dele é the Tin Woodman), e o Leão Covarde (the Cowardly Lyon). Desde já, há algo estranho nessa tríade. O Espantalho e o Homem-de-Lata são seres não vivos, enquanto o Leão Covarde é um animal, um ser vivo. Quem conhece a história sabe que cada um deles procura algo que não tem, e que eles acompanham Dorothy na busca pelo Mágico que pode lhes dar o que eles querem. Dorothy quer voltar para o Kansas, de onde foi arrancada por um furacão. Os três amigos de Dorothy, no entanto, procuram coisas que não têm: o Espantalho quer um cérebro, o Homem-de-Lata quer um coração, e o Leão quer... coragem? Há algo estranho aqui, enquanto os outros dois querem órgãos, coisas concretas, o Leão quer algo abstrato.

Deixando de lado as teorias sobre a crítica à (e representação da) política dos EUA na época em que o livro foi escrito (1900), passamos para uma interpretação mais universal. É fácil perceber (desde o início, mas, isso fica mais claro durante a leitura) como o que os dois personagens querem na verdade não é o órgão em si, mas algo abstrato, que é metaforizado através desses objetos concretos. O Espantalho quer inteligência (cérebro) e o Homem-de-Lata quer sentimento (coração). Durante todo o livro isso fica explícito, e, mais ainda, fica claro que eles já têm o que querem, inclusive o Leão, que quer coragem.

Na versão mais famosa dessa história, o filme de 1939, O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, dirigido por Victor Fleming e com Judy Garland no papel de Dorothy), não fica tão claro quanto no livro que eles já possuem aquilo que procuram, algo que é reafirmado várias vezes, implicitamente, na obra de L. Frank Baum. Sempre é o Espantalho que pensa nas formas de sair dos problemas que eles encontram pelo caminho; o Homem-de-Lata sempre se comove com as criaturas prejudicadas por isso ou por aquilo; e o Leão Covarde é quem sempre enfrenta os inimigos, embora afirme o tempo inteiro que sente medo ao fazer isso. O filme poderia ter explorado melhor essa característica do livro.

Voltando para as metáforas; dizíamos que o Espantalho procura um cérebro, mas quer, na verdade, inteligência, que o Homem-de-Lata procura um coração, mas quer, na verdade, sentimento, e que o Leão Covarde quer coragem, mas quer, na verdade... Na verdade, o que o Leão quer já é abstrato, o que nos faz pensar sobre a contraparte concreta dessa coisa abstrata, a coragem. Parece que, comparando com os outros, o que o Leão procura é: "colhões", cojones, balls. Cojones seria a contraparte concreta do seu querer abstrato: a coragem. Não seria adequado, claro, que um Leão ficasse por aí pelo mundo de Oz dizendo a menininhas do interior norte-americano que quer um par de bolas dentro de um saco, para pendurar no meio das pernas. Talvez por isso o querer do Leão já apareça em sua versão abstrata.

De qualquer maneira, são três coisas que as personagens querem ter: inteligência (sabedoria, conhecimento), sentimento (emoções, compaixão), e coragem (bravura, impavidez). Não posso deixar de lembrar, pensando nessa tríade, nos três princípios básicos do Samurai, tal qual eles aparecem no Hagakure, o livro do Samurai (1716, aproximadamente): inteligência, humanidade e coragem. Vale citar dois trechos do livro de Yamamoto Tsimetomo.

"The wisdom and courage that come from compassion are real wisdom and courage. When one punishes or strives with the heart of compassion, what he does will be limitless in strength and correctness."
"A sabedoria e a coragem que vêm da compaixão são verdadeira sabedoria e coragem. Quando alguém pune ou mata com um coração cheio de compaixão, o que ele faz não terá limites em força e certidão."

"being a Samurai (...), its basis lies first in seriously devoting one's body and soul to his master. (...) to do beyond this, it would be to fit oneself inwardly with intelligence, humanity and courage."
"ser um Samurai (...), sua base jaz primeiro em devotar seriamente o corpo e a alma para seu mestre. (...) ir além disso seria se ajustar internamente com a inteligência, o humanismo, e a coragem."

Se pensarmos que aqueles três personagens são exteriorizações de vontades e necessidades de Dorothy, podemos concluir, daí, que ela está no caminho certo para se tornar um Samurai.

Eu posso estar brincando, mas é tudo verdade...

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figuras:
Capa da primeira edição do livro The Wonderful Wizard of Oz;
Imagem da versão para o cinema de 1939, The Wizard of Oz.

A pele de Diane Arbus




O filme A Pele (Fur: An Imaginary Portrait of Diane Arbus, 2006) não é uma biografia da fotógrafa americana Diane Arbus. É, como propõe o título, um retrato imaginário. Vemos, durante o filme, que Diane (Nicole Kidman) se interessa pelo grotesco, pelo anormal, e vê nisso uma certa beleza. Essa beleza do grotesco é vista nas suas fotografias, na obra da artista real. A mente de Diane no filme é conturbada, e isso parece ser um comentário sobre a mente da artista, como se ela precisasse expor sua estranheza através da arte. A personagem revela essa estranheza através da personalidade, e procura, através de estranhos que possuem uma "aberração" externa, revelar a sua, que é interna.









(Lionel - Imagem de A Pele)


No começo do filme, a personagem tenta negar sua "aberração" interior, diz não querer ser como é. Mas, depois de entrar em contato com um vizinho, Lionel (Robert Downey Jr.), ela parece cada vez mais abraçar essa sua anormalidade interna. Algo que se revela na fotografia de Diane Arbus se reflete no filme: a personagem Diane parece procurar o estranho por se sentir estranha. Por isso o filme se presta como um retrato "imaginário", pois procura, através da arte de Diane, reconstruir sua pessoa, sua personalidade, como se fosse um retrato interior, da sua alma, e não do seu corpo, da sua vida. Nesse sentido, a pele, o nudismo, assume outro sentido, como se o nu fosse uma aproximação maior com a alma.















(Young girl nudist - 1965)












(Imagem de A Pele)



Expor a pele dos outros, expor as aberrações dos outros, através da fotografia, seria, dentro da idéia geral do filme, um desejo por parte de Diane de expor a si mesma, de expor sua própria aberração, esta que não pode ser vista, nem mesmo em nu. No filme, ela não se sente confortável em ser fotografada, ela prefere se revelar através das fotos que tira, e não através de sua própria imagem.

O relacionamento dela com Lionel, personagem inventada para o filme, assemelha-se a uma busca interior, uma tentativa de se encontrar, de aceitar o estranho nela mesma. A aceitação do seu lado aberração ocorre quando ela faz amor com Lionel, algo que revela o seu amor por esse lado grotesco que existe nela. O fato de Lionel se matar no final do filme tanto significa uma assimilação por parte dela desse seu lado aberração, quanto se mostra uma metáfora (algo metonímia), que, agindo como um foreshadowing, espelha seu próprio suicídio, o suicídio da fotógrafa, em 1971.

Quanto a essa questão (a concretização da personalidade de Diane na tela), o filme se mostra perfeito. No entanto, poderia assimilar melhor as qualidades da obra da fotógrafa real. O filme poderia, por exemplo, ser em preto e branco, naquele tom de prata que ela costumava usar em suas fotos. Da mesma forma que a fotografia de Diane Arbus é mais conhecida por sua temática, e não por quaisquer outras razões artísticas, o filme recupera somente essa parte da sua arte: os temas. Seria necessária uma fotografia mais fiel à obra de Diane, para que o filme conseguisse uma perfeição estética tão grande quanto conseguiu na construção da personagem. Algo importante também para isso, além do tom de prata, seria o olhar para a câmera, tão raro no filme quanto o preto e branco.








(Imagem de A Pele)










(Imagem de A Pele)



Basta que se compare a forma como os temas são tratados no filme e nas fotos de Diane Arbus: não há semelhança outra, que não o tema. A que mais se aproxima, é a imagem das irmãs gêmeas, talvez a foto mais conhecida de Diane.














(Hermaphrodite and dog in carnival - 1970)











(Imagem de A Pele)

















(Jewish giant at home with his parents - 1970)











(Imagem de A Pele)


















(Identical twins - 1967)










(Imagem de A Pele)




Mesmo assim, me parece que Kubrick fez um trabalho melhor de "homenagem" a Diane Arbus em uma rápida, mas memorável, imagem de O Iluminado.












(Imagem de O Iluminado)



A fotografia de Diane Arbus merecia um filme com imagens tão belas e de sentido tão inalcançável quanto ela mesma ("ela mesma" aqui significa tanto a própria Diane quanto sua fotografia).
















(Tattooed man at a carnival - 1970)
















(Naked man being a woman - 1968)

















(child with toy hand grenade in central park - 1962)





“A photograph is a secret about a secret.
The more it tells you the less you know.”
("Uma fotografia é um segredo sobre um segredo.
Quanto mais ele conta, menos você sabe.")
Diane Arbus