Ideograma e poesia - I





No primeiro artigo do livro "Ideograma", Haroldo de Campos faz uma leitura de Ernest Fenollosa, filósofo americano que, entre outras coisas, estudou o chinês como um instrumento para a poesia. Ele comenta como o método de Fenollosa propõe uma leitura de "harmônicos", ou seja, assim como na música, há, na poesia chinesa, "harmônicos" que passam de ideograma para ideograma, transformando um verso em algo pictórico.

Haroldo de Campos propõe, então, uma forma de traduzir os poemas chineses que segue a estrutura de harmônicos. Na poesia ocidental, usa-se o "som" (que forma palavras) para formar harmônicos, e não um pictograma (que forma ideogramas). Ele exemplifica o método chinês usando, entre outros, um verso de Wang Wei, analisado por François Cheng:


(Note como há "caracteres" que se repetem de ideograma para ideograma)

Diz Cheng (citado por Haroldo de Campos):
"Mais do que simples suportes de sons, os ideogramas de impõem com todo o peso de sua presença física. Signos-presença e não signos-utensílio, eles chamam a atenção por sua força emblemática e pelo ritmo gestual que comportam."

Haroldo de Campos faz então uma tradução desse verso, desenvolvendo o pressuposto no plano acústico, como ele mesmo diz, fazendo "uma paráfrase fônica":

hibiscos

na trama
dos ramos
brilhos
de chama

Vale citar a explicação do próprio autor sobre sua tradução:

"(O centelhar da chAMA floral resplende já em trAMA e rAMos, enquanto que os BrIlhOS são como um revérbero de hIBIScOS, num processo geral de metamorfose luminosa interna ao texto)."

Voltando para as imagens, para as "rimas visuais", lembro de novo da cena de 2001 em que o osso parece se "transformar" em objeto espacial, que já foi usada aqui num post anterior.



Nessa cena, pode-se perceber um "harmônico" imagético, um "pictograma" que passa de imagem para imagem, algo assim:


Esse "pictograma", mesmo vazio de significado, passa de uma imagem para outra, está dentro tanto da imagem do osso quanto da imagem do objeto espacial, levando-nos a interpretar a cena da forma já feita no post anterior sobre 2001.

Já que Fenollosa usa um recurso musical para explicar algo pictórico nos ideogramas chineses, e Haroldo de Campos usa o elemento pictórico levando de volta para a poesia ocidental, essencialmente sonora, propondo formas de traduzir os poemas chineses, vou fazer uma brincadeira e propor duas "traduções", em poema, do "verso" do filme de Kubrick:

o osso passado em arma
passa a ser alarma
no espaço em bomba

ou

o osso passado era arma
e passa a ser alarma
na era do espaço em bomba

(Usei "bomba" pois o objeto espacial no filme é na verdade uma bomba nuclear, e fiz quase em formato de haikai para usar dessa mistura oriental-ocidental)

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referências:
CAMPOS, Haroldo de (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977.

filmes:
2001: a space odyssey (2001: uma odisséia no espaço). (dir: Stanley Kubrick)
(clipe retirado do youtube)

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Haroldo de Campos na wikipedia: em português.
Ernest Fenollosa na wikipedia: em inglês.
2001 no imdb: em inglês.
Compre o livro Ideograma: na Livraria Cultura.

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