Furo na trama (O caçador de pipas)




Estou lendo O caçador de pipas.



Pois é, não tenho preconceito com best sellers, inclusive li O Código Da Vinci um pouco antes do filme ser feito. Acho que é necessário ler best sellers, pelo menos para não ficar por fora em uma conversa, ou para poder falar mal.
Não vou, aqui, no entanto, falar mal de O caçador de pipas, embora eu não esteja gostando muito, vou ler até o fim; tem momentos bons.
Quero tratar de um aspecto paralelo, que não tem tanta relação com o livro. No capítulo quatro, o menino rico sunita Amir reconta a história de seu primeiro conto. Amir narra:

"Naquela mesma noite, escrevi minha primeira história. Levei trinta minutos para fazê-lo. Era um pequeno conto meio soturno sobre um homem que encontra um cálice mágico e fica sabendo que, se chorar dentro dele, suas lágrimas vão se transformar em pérolas. Mas, embora tenha sido sempre muito pobre, ele era feliz e raramente chorava. Tratou então de encontrar meios de ficar triste para que as suas lágrimas pudessem fazer dele um homem rico. Quanto mais acumulava pérolas, mais ambicioso ficava. A história terminava com o homem sentado em uma montanha de pérolas, segurando uma faca na mão, chorando inconsolável dentro do cálice e tendo nos braços o cadáver da esposa que tanto amava." (p. 37)

Essa história é a melhor coisa que tem no livro até agora (estou na página 129).

No mesmo capítulo, Hassan, xiita empregado e amigo de Amir, revela um furo na trama do conto:

"- Bem... - recomeçou ele - o que eu queria perguntar é por que o homem matou a esposa. Na verdade, por que ele precisava estar triste para derramar lágrimas? Será que não podia simplesmente cheirar uma cebola?" (p. 40)

O que Amir faz, aparentemente, é abandonar o conto, por causa desse furo. Mas o que um escritor deve fazer em um momento desses, realmente abandonar o conto?
Não. Basta resolver o problema, e esse é muito simples. Incluindo um pequeno detalhe no início do conto, até mesmo uma cena, talvez, em que a personagem descobre que somente as lágrimas de tristeza se transformam em pérolas, o problema é resolvido. Isso é verossimilhante em relação à diegese do conto, pois, num universo em que lágrimas se transformam em pérolas quando choradas dentro de um cálice mágico, é perfeitamente plausível que essa mágica reconheça a diferença entre uma lágrima de tristeza e uma de irritação dos olhos, ou até mesmo de dor, no caso de ele tentar se espetar com uma agulha para chorar.

O modo de lidar com furos na trama é esse: trabalhar em cima do furo, resolvendo o problema, o que pode até trazer mais riqueza para a história.

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* Está sendo feito o filme baseado no romance.
veja no imdb: The Kite Runner.

livro (link na livraria cultura):
HOSSEINI, Khaled. O caçador de pipas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

4 comentários:

Anônimo disse...

olá anakan: parabéns pelo seu blog. os textos estão muito legais. Abraços!

*FILE* disse...

Olá,
gostaria de dizer q tmb gosto muito do seu blog e o tenho nos meus favoritos.
Muito se sabe sobre artes, mas pouco se explica sobre elas.

abraços

Rafa disse...

Muito adequadas as ponderações acerca de contos e tramas em geral... Solucionar os furos que podem surgir ao longo do texto é importante até mesmo (e principalmente) para best sellers. hehe

No conto é tão importante o que se diz quanto o que se deixa de dizer... Mas no caso de ele mesmo ter levantado suspeitas acerca do conto, o furo fica evidente demais.

Parabéns pelo blog interessantíssimo. Sempre que puder darei uma espiada.

alana disse...

Sobre best-sellers: um livro muito vendido deve ser tomado antecipadamente por má literatura? Na maior parte dos casos, infelizmente o prognóstico não é dos melhores, mas eu sou brasileira e não desisto nunca, acabo lendo! (menos os de auto-ajuda, que aí já seria masoquismo)Li "O Código DaVinci", que me divertiu bastante (e ler deve ser prazeroso, também), "Eram os Deuses Astronautas", "O Perfume", até "O Vale das Bonecas". Falei mal depois? Sim, mais de uns que de outros; há aspectos bons em alguns? sim, mais em uns que em outros. Anyway, sempre prefiro conhecer a confiar cegamente nos julgamentos de outros.