Ideograma e poesia - II





Já falei aqui sobre o ideograma e a poesia chinesa (postagem anterior). Outra questão que permeia a tradução de Haroldo de Campos (no livro Ideograma) do poema chinês é o uso de "palavras" que estão dentro dos ideogramas usados no texto, mas que não figuram no verso em si.



"Rosto" está dentro de "hibisco", "boca" está dentro de "rosto". "Lótus", que faz parte do ideograma de hibisco, contém "homem".
Seria necessário, para fazer uma tradução extremamente acurada, usar esse mesmo mecanismo, com as mesmas palavras (ou pelo menos outras do mesmo campo semântico) "dentro" das usadas no poema. Acho que é impossível.
Algo possível é fazer poesia em português, por exemplo, usando um mecanismo parecido. Seria como utilizar a palavra "negócio", em um poema, de forma que o sentido de "ócio" e, inclusive, o de "negar", formasse o todo do poema, como se "negócio" fosse uma negação do ócio.

Para fazer as traduções, no entanto, seria necessário, nas línguas ocidentais, incluir novas palavras, usando até sons semelhantes, como se, pelo som, umas estivessem contidas nas outras, o que é diferente do exemplo chinês, mas pelo menos aproximado.

No cinema é possível uma maior aproximação do exemplo chinês, já que nele são utilizadas imagens. Recorro mais uma vez a 2001 para exemplificar.


Nessa imagem, podemos ver como a nave, desse ângulo, se assemelha a um rosto humano, como se "rosto" estivesse "dentro" de "nave". Daí é possível chegar a uma das questões do filme, a de que as máquinas estão substituindo os homens, o que se torna evidente quando somos apresentados a HAL9000.
(Isso lembra, mais uma vez, McLuhan)


Já aqui, é possível perceber a aparência de espermatozóide da nave. A partir dessa imagem já se pode inferir algo que se tornará mais completo no final do filme: a viagem é como uma fecundação do universo pelo homem. Na cena final temos várias razões para pensar assim: a viagem através de um túnel, a divisão do astronauta, e, claro, o surgimento do feto, a criança-estrela.

Com esses exemplos, dá para perceber que o cinema pode fazer poesia de forma mais aproximada do modelo chinês do que a própria poesia ocidental.

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referências:
CAMPOS, Haroldo de (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Cultrix, 1977. (link na Livraria Cultura)

imagens retiradas do filme (links no imdb):
2001: a space odyssey (2001: uma odisséia no espaço). (dir: Stanley Kubrick)

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